Você tem se vingado de você na hora de dormir - e nem sabe o porquê

Himalayan salt lamp and wifi device
Usar o celular na cama, como uma forma de entetenimento, tem efeitos séries na saúde mental e física (Foto: Getty Creative)

Pense no seguinte cenário: você acorda relativamente cedo, toma café da manhã, talvez um banho, senta no computador e fica por ali até umas 19h, quando oficialmente termina o seu horário de trabalho - isso, claro, se você estiver no esquema home-office. Hora do jantar e do banho, se você não o tomou de manhã, seguido de mais alguma tarefa necessária para manter a casa em ordem (ou talvez os seus filhos) e, pronto, quando você olha no relógio são dez da noite e você não teve um segundo de descanso.

Então, o que você faz? Simples: pega o celular e passa um tempo no Twitter, no Instagram, vendo uma série ou filme até tarde, mesmo sabendo que precisa levantar cedo no dia seguinte para viver tudo outra vez, com a justificativa de que esse é "o seu momento de fazer o que quiser". Se você se viu fazendo isso alguma vez, então você já se tornou adepto do "revenge bedtime procrastinarion".

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Tudo bem que sempre parece surgir um termo novo em inglês para explicar um comportamento que a gente já conhece há tempos, mas a gente promete que vai fazer sentido. Nesse caso, o "revenge bedtime procrastination", ou, em português claro, "procrastinação de vingança na hora de dormir", é conhecido entre chineses e japoneses há anos, e gerou uma tendência que não tem nada de positiva.

De forma consciente, todo mundo sabe que precisa de uma boa noite de sono para ser produtivo. No entanto, da maneira que a sociedade é estruturada, tudo gira em torno do trabalho e nosso valor profissional - ou seja, o quanto somos produtivos, profissionalmente falando. O resultado disso é uma rotina exaustiva, mas que, pré-pandemia, talvez não ficasse tão perceptível por conta dos inúmeros estímulos externos - happy hours, cinemas, passeios no shopping aos finais de semana…

De isolamento social, trancados em casa, as oportunidades de relaxamento além do ambiente com o qual nós, agora, dividimos o nosso espaço de trabalho ficaram muito limitadas, e a única forma que muitos jovens da geração Z tem encontrado de se desligar dessa vida orientada pelo trabalho e os estudos é ficando acordado até mais tarde. O que, como você pode imaginar, é um problema.

Raio-X do sono

O sono é um dos pilares essenciais da medicina do estilo de vida, que engloba também a nutrição, a atividade física, o manejo do estresse e a busca pela felicidade, evitando, nesse caminho, drogas de abuso. Já dá para imaginar o efeito que brincar com ele pode ter na vida de alguém, certo?

"O sono é essencial para o funcionamento adequado do nosso corpo e da nossa mente", diz a Dra. Flávia Oliveira, consultora do sono. "Durante o sono, ocorre a restauração celular, inclusive cerebral. Tanto a quantidade como a qualidade do sono irão impactar no nosso dia a dia."

Segundo ela, privar-se de uma boa noite de sono tem efeitos marcantes, principalmente em relação ao rendimento diante de atividades diárias. Pense na perda da capacidade de concentração e na tomada de decisões, que também é afetada. Até mesmo o apetite é prejudicado quando se passa por alterações no sono.

"Muitas pessoas acreditam que dormir pode ser uma perda de tempo. Na verdade, sacrificar horas de sono pode gerar a sensação inicial de que se está produzindo mais, quando, na verdade, o resultado é aumento de estresse, alterações de humor, dificuldade de concentração e de tomada de decisão. Precisamos do sono para sedimentar os conhecimentos adquiridos durante o dia, ele é fundamental nesse processo", continua a médica.

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Para descansar e recuperar a energia do corpo e da mente, o ideal é deixar de usar o celular 1h30 antes de dormir (Foto: Getty Images)

Aliás, muitos desses efeitos aparecem de forma quase imediata, mas podem passar despercebidos diante de um organismo estressado. A questão da fome é uma das principais: "Sob repouso, o organismo regula a produção de leptina, hormônio envolvido com a saciedade. Quem não dorme direito fica com maior apetite no dia seguinte e tudo isso favorece o acúmulo de gordura, contribuindo com problemas metabólicos, como obesidade ou diabetes, e piorar nossa imunidade. Quem dorme menos de 6h cronicamente possui o consumo em média de 385 kcal a mais por dia", explica a endocrinologista e metabologista Dra. Paula Pires.

E, ok, falamos da geração Z ali em cima porque esses efeitos se tornaram queixas comuns desses jovens, mas não são só eles que estão sofrendo com questões relacionadas ao sono nesse período pandêmico.

"Muitas famílias sobrecarregadas com múltiplas funções acabaram sacrificando o sono para compensar esse excesso de trabalho, tanto oficial como domiciliar. Esse estresse pode chegar ao ponto de se tornar incapacitante, como nos casos em que o indivíduo atinge o estado de burnout", diz a Dra. Márcia. Caso você não lembre, o burnout é uma condição na qual há a sensação de perda de energia física, mental e cognitiva, um reflexo do estresse crônico e um problema no Brasil e no mundo.

"Vou só olhar o feed uma última vez"

Entra aí a questão da conectividade. A internet virou meio de trabalho, de comunicação formal e informal, até a maneira como nos entretemos no tempo livre. E o resultado, é claro, mais cedo ou mais tarde começaria a aparecer no nosso comportamento.

"Para termos um bom sono durante a noite, precisamos cuidar muito bem da qualidade do nosso dia. Pois a qualidade de um depende da qualidade do outro", explica a Dra. Paula. "Hoje, um dos maiores problemas é a privação voluntária de sono que leva à síndrome do sono insuficiente, causando diversos problemas de saúde, podendo contribuir com problemas metabólicos, como obesidade ou diabetes, e piorar nossa imunidade. Por estarem o tempo todo conectadas muitas pessoas não enxergam a oportunidade de dormir."

Sim, realmente, percebemos que o uso de telas não só aumentou como virou uma parte absolutamente integrada do nosso dia a dia na pandemia. Até mesmo os exercícios físicos começaram a ser feitos a partir dela. No entanto, e isso não é novo, já existem estudos que explicam como o uso dessas telinhas, sejam de celulares ou computadores, interfere no ciclo de sono natural do corpo.

"Existe uma correlação do uso de telas e a inibição da produção de melatonina - hormônio do sono", continua a Dra. Márcia. "Uma luz azul emitida por esses aparelhos afeta a sua liberação. Muitas pessoas se queixam que estão cansadas e sonolentas no final do dia, e ao irem para a cama apresentam dificuldade de iniciar o sono. Caso o uso de eletrônicos ocorra nas 2 horas que antecedem o horário de ir pra cama, essa situação pode ocorrer. O ideal é realizar um ritual de sono que contemple outras atividades não relacionadas ao uso de telas, como uma leitura, por exemplo. Outro cuidado é durante o dia, com a exposição à luz natural. Com o tempo de tela aumentando, e os momentos de isolamento social, o contato com o mundo externo foi prejudicado. A luz natural auxilia o corpo a 'entender' o ciclo circadiano, resultando em uma maior qualidade do sono."

É como se o corpo humano fosse um girassol, que acompanha a luz solar para ter mais ou menos energia - funções básicas, como a digestão, estão intimamente ligadas com esse ciclo, e o mesmo vale para o sono.

Mas, calma, para tudo há uma saída, inclusive para o retardo proposital do merecido e necessário descanso. "O ideal é estabelecer uma rotina diária, na qual haja espaço para momentos de desconexão do trabalho", diz a consultora do sono. "O sono deve estar na agenda, é um compromisso com você mesmo. Afinal você não faltaria a um compromisso importante da sua empresa, certo? Pense em sua qualidade de vida como um compromisso, uma reunião consigo mesmo. O autocuidado é essencial. Para produzir mais e de maneira mais eficiente o sono é, sim, um dos alicerces fundamentais."

Segundo a Dra. Paula, existem alguns passos que podem fazer parte dessa rotina e que vão colaborar tanto para o seu descanso ao longo do dia quanto para um sono melhor. A primeira e maior dica da médica é esta: não olhar o celular por até 1h30 antes da sua hora de dormir. "Lembre-se que o processo do sono não é voluntário. Temos que usar de comportamentos voluntários para influenciar esse processo involuntário. Temos um ritmo e, se o seu corpo não encontrá-lo, você não vai conseguir dormir."

Para isso:

  • Faça atividades durante o dia que ajudem a induzir o sono a noite, como atividade física.

  • Deixe o seu ambiente confortável: escuro, silencioso, com temperatura amena, entre 18-20 graus.

  • Acorde e durma sempre no mesmo horário. O corpo precisa aprender esse ritmo!

Fora isso, existem os famosos rituais do sono, que podem colaborar para uma noite mais tranquila. Por exemplo, tomar um chá calmante (como de erva-doce ou camomila), ouvir músicas relaxantes, ler um livro ou até investir em aromaterapia. Evitar a cafeína é um lembrete desnecessário, certo? Mas a endocrinologista indica que a última xícara seja até, no máximo, 15h.

Invista em um jantar mais leve, sem muitos carboidratos ou alimentos que aumentam a secreção de serotonina e dopamina, como ovos, peixes, castanhas, lentilhas, kiwi, laranjas e cerejas. Aquele vinho à noite, para relaxar parece uma boa ideia, mas, você acertou!, não ajuda com um bom sono. O ideal é tomar a sua tacinha até 3 horas antes de deitar.

Tudo isso parece um esforço e tanto para dormir bem, mas, acredite, olhamos para a internet de uma forma que, além de viciante e escravizante, gera efeitos nocivos para a nossa saúde mental e do corpo. Diminuir um pouco esse ritmo de telas e trocar o suposto entretenimento online por um descanso consciente fará uma diferença gigantesca na sua vida. E, acredite, todos nós precisamos dessa mudança.