Tapa de Will Smith é rara defesa pública diante da humilhação de mulheres negras
A cerimônia do Oscar 2022 foi totalmente eclipsada pelo tapa dado por Will Smith no rosto de Chris Rock. O ator, que pouco depois venceu o primeiro Oscar de sua carreira, subiu ao palco e bateu em Chris Rock como resposta a uma piada sexista e capacitista do humorista sobre sua esposa, Jada Pinkett Smith.
Rock tirou sarro de Jada a chamando de G.I Jane, comparando seu visual com o de Demi Moore no longa "Até o Limite da Honra", no qual a atriz raspou a cabeça para o papel. Jada, entretanto, não está careca por escolha estética e sim devido a um distúrbio auto-imune chamado alopecia. Revoltado, Smith subiu ao palco defender a esposa e depois, em meio à lágrimas, pediu desculpas ao público e disse ser capaz de fazer "loucuras" por seu amor pela família.
Capacitismo e sexismo
Não houve nenhuma loucura na atitude de Will Smith. A piada de Chris Rock foi não só sexista como capacitista, já que uma doença auto-imune não deveria ser mote de nenhum tipo de piada ou ridicularização.
Em entrevista ao Yahoo, o influenciador digital Ivan Baron definiu o capacitismo como um reforço da ideologia colonial de busca pela "perfeição". “Capacitismo é aquela velha ideologia que apenas corpos e mentes perfeitas são funcionais, e quem não preencher esses requisitos estarão excluídos, isso vale para as Pessoas com Deficiência. A melhor forma de combater é a desconstrução, criando novas narrativas aonde essas pessoas sejam protagonistas e não estejam mais em papéis de “Especiais” ou “Desumanos”", afirma.
Piadas a respeito da aparência de uma pessoa com qualquer tipo de deficiência mexem com a autoestima do indivíduo e desumanizam o alvo da chacota, especialmente quando falamos de uma mulher negra, que já precisa lidar com padrões de beleza racistas criados pela branquitude. O caso é ainda mais delicado pela alopecia ser agravada pelo stress, ou seja, a humilhação pela qual Jada passou pode piorar ainda mais seu estado de saúde.
Em um texto sobre o assunto, a escritora Joice Berth aponta que a fala de Rock desumaniza Jada ao ridicularizar exatamente seu cabelo, sendo que mulheres pretas são alvos da patrulha da branquitude sempre que assumem seu cabelo natural. "Ridicularizar mulheres negras é um dos “esportes” preferidos do racismo. O mundo racista converteu o cabelo da negritude em instrumento de opressão estética. Desde que nascemos nosso cabelo é alvo de piada, não importa se é natural ou se está de acordo com o que a sociedade brancocêtrica definiu como bonito. É sempre alvo de piadas", escreveu.
Vale lembrar que essa não é a primeira vez que Chris Rock faz piadas sexistas às custas de mulheres pretas. Na cerimônia do Oscar de 2016, o humorista fez uma piada sobre as calcinhas da cantora Rihanna, reduzindo a importância da artista à sua sexualidade.
O que é alopecia
A alopecia é um dos problemas mais relacionados à perda de cabelo ou pelo entre homens e mulheres em qualquer parte do corpo. Ela pode ser causada por influências genéticas, processos inflamatórios locais ou doenças sistêmicas.
Um dos tipos mais comuns de alopecia é a areata, que é uma doença autoimune — quando as células atacam o próprio organismo. Ela atinge aproximadamente 2% da população mundial em diferentes níveis — pode afetar desde pequenas áreas do couro cabeludo ou da barba, por meio de lesões circulares, ou até causar a completa ausência dos fios em todo o corpo.
Ninguém defende mulheres negras em público
Na compilação "Intelectuais Negras - Estudos Feministas", a teórica bell hooks fala da alienação da mulher preta em contextos afetivos: homens querem conselhos, apoio emocional e amizade de mulheres pretas, mas não é com elas que a maioria se relaciona, casa e assume publicamente. "É sobre o ato de amar e ser amada que se alojam as hierarquias sociais prescritas e as representações feitas a respeito do corpo da mulher negra", explica Hooks. Quantos homens brancos por aí assumem as mulheres pretas como suas parceiras e esposas?
A rejeição sistemática de mulheres pretas é uma arma do racismo, e Will Smith desafiou esse abandono defendendo Jada publicamente. Diante de uma das noites mais visadas do entretenimento mundial, Smith arriscou o cancelamento de seus pares e do público ao disparar contra Chris Rock. "A atitude do Will Smith é raríssima!! Homem defendendo mulher negra? Publicamente? Raríssimas vezes na história o mundo viu isso. Os homens(de todas as raças) tem VERGONHA até de gostar de mulher negra! Elogio? Só escondido e olhe lá!", escreveu Joice Berth.
Carla Akotirene, escritora e doutoranda em estudos feministas pela Universidade Federal da Bahia, definiu a atitude de Smith como coerente diante da violência sofrida por Jada. "Aplaudo Will Smith, porque gênero construiu a masculinidade a partir da violência. Os homens são socializados para darem murro, as músicas fazem menção a bater, a botar com força. Então nessa emoção de ver sua companheira sendo humilhada, nada mais coerente que um homem enquadrar o outro, como quem enquadra a sociedade".
Cabelo é poder
Mulheres negras passam por muito racismo ao assumirem seus afros, e são vítima constante de opressão diante de padrões de beleza criados pela branquitude. No Egito antigo, penteados consolidavam a identidade e o status social e político de quem os usava, e foi nesse contexto que foi criado, por exemplo, o pente garfo.
A origem dos cabelos trançados remonta a 3.500 a.C, na região da Namíbia, na África, onde cada etnia adotava diferentes tipos de trançado, indicando idade, estado civil, poder e status social.
Para evitar os pontos de calvície causados pela alopecia, Jada resolveu raspar a cabeça e afirmou que está em paz com a decisão. Piadas como a de Chris Rock podem mexer não só com a autoestima da atriz como de todas as mulheres pretas que sofrem com a síndrome e precisam se privar de usar seus cabelos como símbolo de beleza, orgulho e ancestralidade.
Quem sai ganhando é a branquitude
A situação entre Chris Rock e Will Smith é complexa: estamos falando de dois homens pretos brigando em um palco para o entretenimento da academia do Oscar e do público, em um local majoritariamente branco. O Oscar é uma premiação notoriamente afetada pelo racismo, e apenas uma mulher venceu o prêmio de melhor atriz em toda a história com Halle Berry em "A Última Ceia".
Nesse contexto, só a branquitude sai ganhando quando a dor e o sofrimento de três pessoas pretas é transformada em entretenimento diante de um dos palcos mais visados do mundo da arte. É preciso humanizar esses espaços para que violências de gênero e estruturas racistas não façam da dor uma moeda de troca por audiência, memes e chacota.