SPFW mostra que costura resiste a era Bolsonaro e deve perseguir roupa boa
SĂO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Nem sĂł de manifestaçÔes polĂticas e bandeiras identitĂĄrias Ă© feita esta edição da SĂŁo Paulo Fashion Week. Embora elas pareçam cada vez mais importantes para manter o evento conectado Ă realidade, hĂĄ espaço para marcas dispostas a exibir "apenas" boas roupas. Afinal, sĂŁo elas que, apresentadas em blocos na passarela, transportam o espectador para outro lugar, seja ele confortĂĄvel, seja estranho ao olhar.
Essa moda em estado bruto, cada vez mais difĂcil de se ver num espaço em que as ideias Ă s vezes nĂŁo acompanham modelagem, mistura de tecidos e colorismo afiados, norteou parte dos desfiles da sexta-feira (3) e do sĂĄbado (4).
O trabalho da estilista Rafaela Caniello, da Neriage, é calmo, guarda relaçÔes com ideias sensoriais, entre elas a relação de espaço, tempo e sentimentos da designer.
Por isso, quando levou seu desfile ao bloco recĂ©m-inaugurado do Hotel Rosewood, na ĂĄrea da Cidade Matarazzo, na regiĂŁo da Paulista, ofereceu uma pausa na agenda polĂtica frenĂ©tica que resume esta temporada para que as pessoas apenas admirassem sua proposta de costurar o mar, a areia e um momento de calmaria.
Na coleção, tons neutros, com propostas que transitaram entre o off-white, o cobre e um dourado opaco, tranquilo, foram combinadas ao azul profundo do mar, um tom elétrico próximo ao criado por Yves Klein no pós-Guerra.
Nada Ă© incĂŽmodo na sĂ©rie de looks plissados que identificam a grife, uma das mais desejadas pelas jovens paulistanas afeitas Ă arte e a uma roupa que lhe cubra com tecidos nobilissimos e plissados construĂdos com perfeição.
NĂŁo soa velha, porĂ©m, a ideia de misturar desde cristais da austrĂaca Swarovski, aplicados na alfaiataria leve da marca, atĂ© pares de tĂȘnis da suiça On Running. O balanço Ă© executado de tal forma por Caniello que ela consegue criar um minimalismo fresco, longe da frigidez geomĂ©trica e monocromĂĄtica demais que jĂĄ definiu o uso dessa escola na mesa de corte.
O desfile foi embalado por um poema lido pela atriz Alice Braga, que, após recitå-lo, apareceu no fim da apresentação com uma das criaçÔes em vermelho da Neriage ao lado de sua estilista.
Costurar tambĂ©m foi a escolha de um dos designers mais mais resilientes da moda paulistana, o piauiense Weider Silveiro. A coleção Womanizer prestou homenagem, na tarde do sĂĄbado, Ă moda de Madame Gres, um Ăcone da costura francesa dos 1930.
A estilista tinha como propĂłsito criar uma alta-costura extremamente tĂ©cnica, um glamour traduzido em peças de inspiração helĂȘnica nas quais o efeito sanfona do plissado Ă© sagrado.
Silveiro recompĂ”e as bases de Gres em propostas para a noite, tanto as de baile quanto Ă s que correm sob o globo prateado da boate. Looks inteiros metalizados em paetĂȘs e lamĂȘ se confundiram aos menos esfuziantes, a exemplo dos conjuntos em branco e os tingidos em preto, que abriram o desfile no Senac Lapa, na zona oeste. Uma Ășnica estampa floral sob fundo azul, obsessĂŁo do designer nesta temporada, conferia um toque contemporĂąneo Ă s propostas.
O estilista aplicou cinturas marcadas por amarraçÔes escondidas na costura, que ampliam a possibilidade de corpos menos esquålidos que os das estrelas vestidas por Madame Gres poderem vestir as peças sem se adequar a elas.
Pode parecer algo menor, mas essa é uma abordagem extremamente nova na criação de moda, que não considerava como as modelagens se adequariam às medidas de quem estivesse fora da régua usada pelos estilistas.
Não é verdade o conceito em voga entre os estilistas da nova geração que sai agora das faculdades direto para a passarela de que para buscar propósito no ato de costurar ideias é preciso preterir o esplendor e a diversão.
Ă sĂł olhar para WalĂ©rio AraĂșjo, pernambucano que encerrou a sexta-feira da SPFW levando ao evento um compilado de suas ideias absurdas, recheadas de brilho estroboscĂłpico e padrĂ”es extravagantes que permeiam sua passarela hĂĄ 30 anos.
Querido entre celebridades que recorrerem a ele quando precisam causar em bailes de gala e sambĂłdromos, o estilista colocou o rapper do momento, o carioca XamĂŁ, para vestir um look de forrado de plumas e brilho. Ao mesmo tempo, pĂŽs na passarela a heroĂna das drag queens, a gaĂșcha EloĂna dos Leopardos, que aos 85 anos levantou a plateia no Komplexo Tempo, galpĂŁo da zona leste que recebe os desfiles.
Como numa grande festa que recordou o bate cabelo dos 1990, paisagem potencializada pela dupla Ă frente da picape de som, o estilista Alexandre Herchcovitch e seu parceiro de longa data, o DJ Johnny Luxo, AraĂșjo trouxe de volta os dias em que moda significava tambĂ©m se vestir para rir, brilhar e esbaldar-se.
O estilista parece dizer que talvez um pouco de escapismo possa cair bem a uma moda que anda se levando a sério demais, por boas razÔes, é claro, mas à beira de uma depressão estética severa se deixar ser engolida por tanta dor.