Se um dia perguntarem quem foi Elza Soares, a resposta é: foi Brasil
20 de janeiro, dia de São Sebastião, o santo católico que sobreviveu às flechas dos algozes e, resgatado de um rio, retornou para encará-los de frente. Alvo das setas por ser mulher, preta, pobre, vanguardista, ousada, brasileira, Elza Soares caiu e levantou-se a vida inteira. Soube inventar e reinventar-se, com uma potência de quem dizia ter vindo do Planeta Fome, mas que parecia não ser desse plano.
Nascida Gomes da Conceição, Elza ainda menina foi feita Soares à força. E se fez mulher, rainha, deusa e a cantora do milênio ao longo das mais de seis décadas de carreira, em uma trajetória única, que neste momento é o que vale ser lembrado e louvado.
20 de janeiro de São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro, cidade que foi o palco maior de Elza. Cria do subúrbio carioca, fez sua estreia em 1953 chocando a lenda Ary Barroso, em um dos momentos icônicos da música brasileira. Ao ver aquela jovem preta de roupa surrada no seu palco, Barroso perguntou de que planeta ela vinha. “Do Planeta Fome”, respondeu, sem pestanejar.
Cantora do milênio
Diante do sucesso da bossa nova, que passaria a borracha na história de nomes como Alaíde Costa e Johnny Alf (quem não os conhece, dá uma busca pelas fotos ou só imagina a cor da pele), ela lançava "Bossa Negra" em 1960. Viriam ainda "Sangue, Suor e Raça" (1972), "Pilão + Raça = Elza" (1977), "Senhora da Terra" (1979) e "Elza negra, negra Elza" (1980), para ficar apenas nos títulos dos discos.
Para ela, não bastava estar ali ocupado o espaço, o que já incomodava muita gente. Elza usou a vida inteira de sua voz para lutar. Nunca calou-se, até porque não tinha amarra que a contivesse. Se “Bossa Negra”, apenas seu segundo disco, marcava clara posição, os mais recentes "A Mulher do Fim do Mundo" (2015), "Deus É Mulher" (2018) e "Planeta Fome" (2019), por meio de uma firme parceria com uma turma de compositores, músicos e produtores de São Paulo, fecharia um processo de reinvenção, que vinha desde de "Do Coccix Até o Pescoço", lançado ainda em 2002, e chegaria até gravações com Baiana System, Pitty, Liniker, Renegado, Emicida e Criolo.
Foi em "A Mulher do Fim do Mundo" que Elza incorporou à sua história musical um trabalho original, após 55 anos do primeiro disco, com referências abertas a temas como violência doméstica, negritude, sexualidade, tornando ela, então aos 85 anos, a voz do seu tempo.
Elza permaneceu cantando até o fim, como ela clamou em "Mulher do Fim do Mundo, feita sob medida para ela por Alice Coutinho e Rômulo Fróes. Cantou e foi cantada, como na homenagem que sua Mocidade Independente de Padre Miguel fez em 2020, com o enredo Elza Deusa Soares. Escola de samba que, vejam só, tem como padrinho São Sebastião, o francês que por aqui fundiu-se e refundou-se em Oxóssi, o guardião das florestas.
Como se não por acaso, o orixá será o tema do próximo desfile da escola e teve na disputa de sambas de enredo uma composição assinada pela própria Elza com alguns parceiros.
E se fez mulher, rainha, deusa e a cantora do milênio ao longo das mais de seis décadas de carreira
No mundo das escolas, Elza ainda quebraria outros paradigmas. Pela Salgueiro, em 1969, desfilaria como intérprete, uma posição até hoje pouco frequentada pelas mulheres, e seria campeã. Na década seguinte, por quatro Carnavais, cantou na Mocidade. Ainda passaria por Cubango e União da Ilha. Essa era Elza, que vivia sempre dois, três passos além.
E se ainda não fosse pouca a coincidência, em um 20 de janeiro também partiu Mané Garrincha. Maior companheiro de sua vida, foi fonte de amor e de tristeza. Com Mané viveu uma paixão que parou o Brasil, teve que partir do país por perseguição da ditadura e viver duros anos no exílio, teve um filho, perdeu a mãe em uma tragédia.
E a violência sofrida tanto no primeiro casamento, arranjado ainda na sua adolescência, como quando viveu com Garrincha pode ser vista transmutada décadas depois na canção "Maria de Vila Matilde". Nela, a mulher encara o agressor, liga para o 180 e passa uma risca no chão: 'cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim!'
Se um dia perguntarem quem foi Elza, a resposta mais fácil: foi Brasil. E o Brasil foi Elza. Que viverá no legado de vozes pretas como Luedji Luna, Iza, Xênia França, Drik Barbosa, Tássia Reis, Linn da Quebrada, Ludmilla e das “Elzas” Larissa Luz, Khrystal, Késia Estácio, Janamô, Júlia Tizumba, Lais Lacôrte e Verônica Bonfim do maravilhoso musical que encantou o país inteiro.
De muitos, agora o 20 de janeiro é Elza. Só nos resta dizer obrigado, rainha!