Ruy Castro e Lira Neto ensinam a arte de fazer biografias em novos livros
SĂO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Imagine passar anos em uma Ă©poca que nĂŁo Ă© a sua. Mergulhar em documentos, fotos, mobĂlias e histĂłrias que pertenceram a outros. Escolher viver dividido entre a existĂȘncia alheia e a sua e reconstruir um passado atravĂ©s dos restos que ficaram depois que a festa acabou.
Dois escritores lançaram, em dezembro, livros sobre um mesmo ofĂcio. Ruy Castro publica "A Vida por Escrito" e Lira Neto, "A Arte da Biografia", ambos pela Companhia das Letras. Os autores, que deram aulas sobre a escrita biogrĂĄfica, decidiram passar para o papel o que tĂȘm para ensinar. O resultado sĂŁo duas obras que tĂȘm pontos de encontro, mas carregam as particularidades da visĂŁo e da abordagem de cada um.
Ruy Castro estreou na biografia com o que ele chama de livros de "reconstituição histórica", que narram uma época a partir das pessoas que a vivenciaram. "Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa Nova" saiu no final de 1990 e representava um dos primeiros frutos das conversas de dois jornalistas cariocas que trocavam, na praça à frente do jornal Manchete, opiniÔes sobre a escrita biogråfica e as obras que liam -João Måximo e o próprio Ruy.
O segundo livro de Ruy, agora eleito imortal da Academia Brasileira de Letras, foi "O Anjo PornogrĂĄfico", que esmiuçou a vida do dramaturgo Nelson Rodrigues e o reapresentou ao Brasil como uma figura tĂŁo complexa, polĂȘmica e dramĂĄtica quanto suas obras. DaĂ para frente escreveu sobre Garrincha, Carmem Miranda, o samba-canção, o Rio dos anos 1920, Ipanema e mais.
"Para o bem ou para o mal, um biĂłgrafo pode alterar radicalmente a visĂŁo que se tem do biografado e influenciar o pensamento de uma massa de leitores", diz Ruy, que Ă© colunista deste jornal. "Modestamente, acho que fiz isso com 'O Anjo PornogrĂĄfico', corrigindo a visĂŁo que se tinha de Nelson tanto Ă direita quanto Ă esquerda. E com 'Estrela SolitĂĄria', apagando a crença de que Elza Soares destruĂra a vida de Garrincha."
Lira Neto publicou sua primeira biografia no selo editorial da Fundação DemĂłcrito Rocha, onde trabalhava. "O Poder e a Peste: A Vida de Rodolfo TeĂłfilo" contava a histĂłria de um farmacĂȘutico, sanitarista e escritor que atuou na linha de frente do combate da VarĂola no inĂcio do sĂ©culo 20. O livro ganhou visibilidade em jornais para alĂ©m do CearĂĄ e rendeu ao escritor uma participação no "JĂŽ Soares Onze e Meia", do SBT.
Poucos anos depois, o escritor pediu as contas do jornal O Povo, onde tinha encontrado pela primeira vez estabilidade apĂłs uma trajetĂłria profissional errĂĄtica, deixando seu editor e seus colegas de trabalho incrĂ©dulos e duvidando da sua saĂșde mental. Tinha decidido que se dedicaria Ă escrita de biografias dali para frente.
Os 5.000 exemplares da primeira tiragem de seu segundo livro, "Castello: A Marcha Para a Ditadura", se esgotaram ao longo de um ano. Um resultado bom para o autor, mas nĂŁo o suficiente para que vivesse dos direitos autorais. Teve que trabalhar como editor de livros e com comunicação governamental. "O Inimigo do Rei: Uma Biografia de JosĂ© de Alencar", ganhador de um prĂȘmio Jabuti em 2007, tambĂ©m nĂŁo trouxe o conforto econĂŽmico.
A situação só melhorou com "Maysa: Só Numa Multidão de Amores". A biografia da cantora se tornou um sucesso de vendas, e a artista, uma espécie de musa cult. O livro serviu como fonte para a minissérie lançada pelo diretor de cinema Jayme Monjardim, filho de Maysa
Lira acredita que a biografia deve partir de processos criativos de investigação e escrita. "Precisamos utilizar a fonte de forma absolutamente rigorosa, mas, ao mesmo tempo, fazer com que esse olhar minucioso seja amparado por um texto vibrante, criativo, por uma narrativa saborosa, tentando extrair de uma documentação aparentemente morta cores, texturas, imagens, sabores, sensaçÔes auditivas, visuais, da forma mais polissĂȘmica e polifĂŽnica possĂvel", afirma.
E para garantir essa intimidade com a narrativa, Lira busca se aproximar da histĂłria tambĂ©m com o corpo. Quando escrevia sobre GetĂșlio Vargas, viajou atĂ© SĂŁo Borja, cidade onde a personagem nasceu. "Precisei ir atĂ© lĂĄ para segurar, na palma da mĂŁo, um punhado da terra avermelhada da estĂąncia onde morou o ex-presidente", escreve no livro.
TambĂ©m gosta de olhar para o maior nĂșmero de imagens do entrevistado que tiver Ă disposição, reparando nas feiçÔes, na postura e nas roupas.
A polifonia marca sua escrita. Lira acredita que fornecer versÔes distintas de um mesmo episódio, dando espaço para vozes discordantes, pode enriquecer a narrativa. Em seu livro, compara essas vårias versÔes ao filme "Rashomon", de Akira Kurosawa. O longa narra o estupro de uma mulher e o assassinato de seu marido pelo depoimento de quatro pessoas que se abrigam juntas durante uma tempestade.
"Se vocĂȘ tiver cinco testemunhas, provavelmente vocĂȘ vai ter seis relatos diferentes", diz. "Desconfie do historiador ou do biĂłgrafo que diz 'eu escrevo a verdade dos fatos'. Que verdade? A verdade de quem, para quem?"
Ruy Castro é mais rigoroso quanto ao uso de diferentes versÔes na biografia. "Uma biografia ou reconstituição histórica é algo que leva anos para fazer. Nesse espaço consideråvel de tempo, o autor tem a obrigação de encontrar a informação que vai dissolver a lacuna e desempatar entre duas versÔes do mesmo fato."
"à só não desanimar. Dizer ao leitor que existem versÔes divergentes e deixar por isso mesmo é coisa de preguiçoso", afirma.
Mas as ideias dos dois autores se encontram quando o assunto Ă© quais informaçÔes devem entrar em uma biografia ou em uma reconstituição histĂłrica. Se a informação pode ser checada e colabora de alguma forma para a compreensĂŁo do personagem ou da Ă©poca retratada, deve ser utilizada. Mas, por mais picantes e chamativos que sejam, episĂłdios que nĂŁo tĂȘm um papel relevante na trama que estĂĄ sendo tecida ou incertos devem ficar de fora.
Também estão de acordo na repulsa pelo termo "jornalismo literårio". "Ao querer fazer literatura, no mais das vezes, o jornalista termina por cometer literatices", diz Lira em seu livro.
"Se o autor quiser usar a biografia para exibir seus dotes estilĂsticos, deveria se dedicar Ă poesia ou Ă literatura, que sĂŁo o territĂłrio da criação", afirma Ruy.
Ruy Castro considera o "novo jornalismo" -corrente que tenta trazer elementos estilĂsticos e narrativos da ficção para a nĂŁo ficção- coisa de "exibicionistas e romancistas frustrados". Para ele, jornalistas como Norman Mailer, Tom Wolfe e Gay Talese estavam sempre mais preocupados em escrever do que apurar.
Os dois escritores jĂĄ estĂŁo com novos projetos encaminhados. Ruy Castro deve lançar uma nova reconstituição histĂłrica em dois ou trĂȘs anos. JĂĄ Lira Neto estĂĄ com duas biografias a caminho -uma de Oswald de Andrade, que quer publicar atĂ© 2024, quando se completam 70 anos da morte do modernista, e outra de Luiz Gonzaga, que deve sair depois.
A VIDA POR ESCRITO: CIĂNCIA E ARTE DA BIOGRAFIA
Preço R$ 64,90 (184 pågs.); R$ 39,90 (ebook)
Autor Ruy Castro
Editora Companhia das Letras
A ARTE DA BIOGRAFIA
Preço R$ 64,90 (192 pågs.); R$ 39,90 (ebook)
Autor Lira Neto
Editora Companhia das LetraS