Potência negra, Gloria Maria abriu portas para mim e outros jornalistas pretos

Gloria foi uma das pioneiras a romper essa película dolorosa que o racismo no jornalismo é

(Fotos. Divulgação/Tv Globo, TV GLOBO / CEDOC e Globo/João Cotta)
(Fotos. Divulgação/Tv Globo, TV GLOBO / CEDOC e Globo/João Cotta)

Logo cedo, com a notícia da morte de Gloria Maria, resolvi ligar para casa de minha mãe para avisar. Já sabia que seria um choque, e sua da voz surpresa no outro da linha, não negou. Gosto de dizer que foi ela (minha mãe), fonte de inspiração como mulher e negra, que me formou jornalista.

Lá em casa, nos formamos - nós duas - vendo Gloria na TV. Eu, criança ainda, ouvia os comentários orgulhosos de Dona Fátima ao ver a jornalista nos programas mais importantes da Rede Globo. Surgia ali, mesmo sem eu perceber, uma identificação entre as duas: negras retintas, maduras e experientes.

Até hoje, inclusive, quando a mãe vê Maju Coutinho na Tv, diz admirada: “Quem diria, né?! Sempre que vejo ela me lembro de ti”.

Glória Maria na Holanda. (Foto: Globo/Divulgação)
Glória Maria na Holanda. (Foto: Globo/Divulgação)

Como bem lembrou Ailma Teixeira (minha colega nesta editoria), em um bate papo antes desse texto, somos de uma geração que já via outros rostos negros ocupando espaços na TV. Mas, Gloria foi uma das pioneiras a romper essa película dolorosa que o racismo no jornalismo é.

“Entre as diversas palavras bonitas usadas para descrever sua importância, as que mais me chamaram atenção foram as escolhidas por Emicida. Em uma edição do "Papo de Segunda", o rapper disse que a jornalista era uma referência de possibilidade, pois, como mulher negra, mostrou que era possível chegar a lugares não comuns para a nossa cor”. - Ailma Teixeira.

E aqui estamos: eu, Ailma e tantos outros jornalistas negros brasileiros, lembrando - através da dor da despedida - que Gloria nos abriu portas. Em entrevista ao ‘Conversa com Bial’, ela disse: “Você vai aprendendo como é o olhar das pessoas sobre você quando você nasce negro. Não sou mulatinha, sou preta. Você aprende a reconhecer isso. A 20 quilômetros de distância, você sabe onde está um racista”.

A jornalista, inclusive, foi a primeira brasileira a usar a Lei Afonso Arinos, que punia o racismo. Gloria relembrou em seu Instagram que, em 1970, foi impedida de entrar pela porta da frente de um hotel no Rio de Janeiro pelo próprio gerente. Em um especial da Globo, a jornalista relembrou o caso.

"Racismo é uma coisa que eu conheço, que eu vivi, desde sempre. E a gente vai aprendendo a se defender da maneira que pode. Eu tenho orgulho de ter sido a primeira pessoa no Brasil a usar a Lei Afonso Arinos, que punia o racismo, não como crime, mas como contravenção", disse.

Para além da profissional, Gloria brilhou no mundo como mulher negra livre. Liberdade no melhor sentido da palavra: disse ‘não’ quando não quis ser mãe, disse ‘sim’ quando queria, namorou quem quis, vestiu o que lhe embelezava, viajou, viveu experiências inacreditáveis, se desafiou, celebrou outras potências negras.

O racismo dói na alma. Quem não é preto nunca vai entender. Não poderia ser discriminada, humilhada, por causa da cor da minha pele”, disse em outra entrevista.Gloria Maria

Quando ainda ser “livre” é tão caro para nós, Gloria reafirmou a importância de lidar com as desigualdades como deve ser: confrontando.

É preciso gritar, denunciar, lutar coletivamente. Puxar o outro para cima quando avançamos.

“Gloria foi destemida e desbravadora em seu íntimo e no âmbito profissional, deixando uma marca inesquecível e a lembrança de que nunca é fácil, mas sempre possível. Ela ajudou a abrir os caminhos”, comentou comigo Ailma.

E se o “abrir caminhos” virou quase um mantra para nós, negros brasileiros, que todos os dias respiramos vitórias dos antepassados, pensar um futuro onde estejamos vivos e bem é palavra de ordem.

Gloria foi tão grande que abriu seu próprio caminho - agora em outro lugar - no dia que celebramos Iemanjá. Duas rainhas encantadas se encontram e fazem festa. Obrigada, Gloria. Odoyá, Iemanjá!

*Com colaboração da jornalista Ailma Teixeira

Lembre a carreira de Gloria Maria

Gloria era um das jornalistas mais importantes do Brasil e estreou na televisão em 1971 durante a cobertura de um dos maiores desastres da história do Rio de Janeiro: a queda de parte do elevado Paulo de Frontin. “Quem me ensinou tudo, a segurar o microfone, a falar, foi o Orlando Moreira, o primeiro repórter cinematográfico com quem trabalhei”, disse em depoimento ao Memória Globo.

Desde então a jornalista não parou mais e teve uma carreira meteórica por conta de sua espontaneidade em reportar os fatos da cidade. Sempre contratada da TV Globo, ela trabalhou como repórter nas redações do “Jornal Hoje”, “Bom Dia Rio” e “RJTV” no começo da trajetória.

Gloria foi a primeira repórter negra a entrar em um link ao vivo no “Jornal Nacional”. Também cobriu a posse do presidente Jimmy Carter, em 1977, e entrevistou presidentes militares durante a ditadura. O temido João Baptista Figueiredo foi um deles e entrou para o currículo da profissional.

“Foi quando ele [João Figueiredo] fez aquele discurso ‘eu prendo e arrebento’ – para defender a abertura (1979). Na hora, o filme acabou e não tínhamos conseguido gravar. Aí eu pedi: ‘Presidente, é a TV Globo, o ‘Jornal Nacional’, será que o senhor poderia repetir? Problema seu, não vou repetir’, disse Figueiredo a Gloria. Ela ainda lembra que ele mandava, com termos racistas, sua segurança impedir a aproximação da repórter.

Passaporte carimbado

Uma das marcas da carreira de Gloria Maria são as viagens ao redor do mundo. Ela já preencheu mais de oito passaportes com carimbos de imigração dos países que passou e essa trajetória começou em 1986 quando integrou o time do “Fantástico”.

Além das viagens para exibir belezas do mundo e coisas excêntricas, ela também era requisitada para entrevistar artistas famosos como Michael Jackson, Harrison Ford, Nicole Kidman, Leonardo Di Caprio e Madonna. “Saí daqui e diziam que a Madonna era difícil. Foi antipaticíssima com a Marília Gabriela e debochou do seu inglês”.

Informada que teria quatro minutos com a artista, ela jogou com o improviso e ganhou a estrela. “Olha, Madonna, eu tenho quatro minutos, vou errar no inglês, estou assustada, acho que já perdi os quatro minutos”, afirmou e a artista respondeu: “Dê a ela o tempo que ela precisar.”

Além de cobrir viagens e celebridades, ela também teve momentos na história do mundo na sua história como: a guerra das Malvinas (1982), a invasão da embaixada brasileira do Peru por um grupo terrorista (1996), os Jogos Olímpicos de Atlanta (1996) e a Copa do Mundo na França (1998).

Gloria Maria Matta da Silva nasceu no Rio de Janeiro. Filha do alfaiate Cosme Braga da Silva e da dona de casa Edna Alves Matta, estudou em colégios públicos onde obteve sua formação cultural: “Estudei inglês, francês, latim e vencia todos os concursos de redação da escola”. Em 1970, foi levada por uma amiga para ser rádio-escuta da Globo do Rio. Gloria também chegou a conciliar os estudos na faculdade de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) com o emprego de telefonista da Embratel. Na Globo, tornou-se repórter numa época em que os jornalistas ainda não apareciam no vídeo.