“Parei de comer aos 10 anos e lidei com transtorno alimentar dando aulas de culinária”

(Foto: Divulgação)
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Aos 10 anos, Luiza Lindner, 19, de Blumenau (SC), era uma garota comum: boa de prato, não se importava com o que comia ou com a quantidade de comida que ingeria. Até que isso mudou e, em um ano, parou de comer. Sentia-se mal e criou uma relação pouco saudável com a comida. Isso quase causou sua morte.

Perdeu mais de 10 quilos, teve que ser hospitalizada e usar, por meses, uma sonda de alimentação. Descobriu que tinha ansiedade, depressão e transtorno alimentar. Como forma de lidar com o problema, aprendeu a cozinhar e, ainda adolescente, dava aulas de gastronomia para crianças. “Até hoje, eu não sei se realmente gostava de cozinhar ou se fui para esse lugar como uma forma de sobreviver”, fala a estudante de jornalismo que, atualmente, mora em São Paulo (SP). Conheça a história completa de Luiza:

“Eu tinha 10 anos quando parei de comer. Até então, era uma criança que comia de tudo. Não me importava com peso nem imagem ou quantidade de comida, mas comecei a passar mal sempre que comia e a ter medo do desconforto que sentia. Eu me sentia enjoada, tinha dor de barriga. Foi assim que passei a me importar demais com o que eu ingeria e não queria aceitar mais aquilo. Eu tinha ataque de pânico, me sentia enjoada, tinha vontade de tirar aquilo do meu corpo. Comecei a ter muita raiva porque não conseguia mais suportar comida"

O processo de parar de comer foi gradativo. Primeiro comia muito menos e depois foi diminuindo cada vez mais as porções que conseguia ingerir. Meus pais começaram a ficar preocupados até que peguei uma virose. Eu surtei, porque achavam que eu não conseguir comer era uma frescura. Estava bastante fraca, cheguei a pesar 29 kg sendo que meu peso normal era 40kg. Acabei indo para o hospital e fiquei internada por três meses. Passei a me alimentar apenas por uma sonda. Quase morri por desnutrição e tinha que me locomover com cadeiras de rodas.

No hospital, estava bastante triste e desanimada. Fui diagnosticada com depressão e ansiedade. Os médicos já falavam que eu estava com anorexia e ouvia o termo ‘bulimia’. Parte da terapia nesses casos era manter o meu contato com comida, mesmo que eu não estivesse me alimentando por sólidos. Todo dia as funcionárias do hospital levavam comida para mim para eu ver o alimento. Nessa época, soube que, por conta do tempo que fiquei sem comer, teria uma dieta bastante restritiva. Ansiosa, fui logo a pesquisar o tipo de receitas que poderia fazer. Minha mãe viu que estava usando aquilo para ocupar meu tempo no hospital e me deu a ideia de criar um blog para publicar minhas receitas.

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Quando recebi a alta, com 11 anos, comecei a cozinhar em casa, mesmo ainda estando com sonda. Meu grande objetivo era voltar a comer, a ficar boa. A cozinha se tornou esse lugar onde eu procurava sobreviver. No começo, eram receitas simples, porque nem mesmo conseguia ficar muito tempo em pé. Era uma forma de eu fazer as pazes com a comida, com a alimentação.

Um dia, acordei e a sonda tinha saído. Os médicos disseram que eu podia ficar sem ela se, em três dias, meu peso não mudasse. Voltei a comer, com bastante medo. Não era prazeroso, o objetivo era sobreviver. Foi completamente a força, para que eu não precisasse voltar a usar a sonda. Tinha uma dieta muito restritiva, com horários e porções muito controlados. Era uma escrava dessa rotina e, por isso, a gastronomia basicamente se tornou a minha vida.

Em 2016, aos 12 anos, comecei a vender o que eu cozinhava em feirinhas de pequenos empreendedores que ia com a minha mãe, que é dona de uma loja de artesanato. Comecei também a fazer cursos e a dar aulas de culinária para crianças e adolescentes esporadicamente. Minha dieta tinha ficado menos restritiva e pude fazer um curso de confeitaria. Até que em 2017 eu tive uma super recaída.

Estava fazendo o acompanhamento, mas voltei a ficar triste, a sentir muita raiva e, consequentemente, voltei a parar de comer. Perdi muito peso, voltei para o hospital e coloquei novamente a sonda. Os médicos descobriram, também, que eu estava com hepatite. Era difícil entender que a partir de que ponto o desconforto que eu tinha era físico ou emocional. No meu caso, eram os dois. Fiquei um mês internada e voltei para a casa com sonda, mas, desta vez, estava mais forte. Pude continuar indo à escola. Tirei ela cinco meses depois porque a minha médica percebeu que eu conseguiria voltar a comer sozinha.

Em 2018, com 14 anos, comecei a trabalhar com confeitaria e a dar aulas de culinária. No ano seguinte, eu tinha duas turmas fixas, uma de crianças e outra de adolescentes. Mantinha, também, um canal do YouTube onde publicava minhas receitas. Eu ainda estava bastante fraca, era comum passar mal depois das aulas. Porém, era eu quem comprava os ingredientes e utensílios que os alunos precisariam. Nem sei como dava conta. Mesmo dando as aulas, eu não comia o que era feito nas aulas. Não tinha vontade e tinha medo de como poderia reagir caso comesse. Como não queria assustar as crianças, eu evitava.

Dei aulas até março de 2020, quando começou a pandemia. Com o confinamento, tive tempo para pensar. É que, desde 2015, estava tão preocupada em sobreviver que mal sabia quem eu era além da garota que lidava com transtorno alimentar cozinhando. Até hoje eu não sei se gostava de cozinhar, mas passei tanto tempo fazendo isso que achei que era o meu futuro, era meu sonho e viveria daquilo. Porém, como não podia dar aulas, tive tempo para reconhecer tudo o que tinha feito e espaço para compreender quem sou eu além do meu transtorno alimentar. Todo mundo sabia que eu tinha esse problema, que tinha sido internada e que tinha superado com a culinária. Mas eu me resumia a isso?

Nesse tempo, entendi que gostava de fazer outras coisas. Comecei a escrever, focar em outras coisas e foi o momento em que fui mais feliz desde os meus nove anos de idade. Ganhei peso rápido. Não a força, mas naturalmente. Eu me vi muito feliz, fiz vestibular (o que achava que nunca faria) e passei em um curso de jornalismo. Agora continuo escrevendo, me comunicando como fazia quando cozinhava, mas coisas que não estão ligadas ao meu trauma com a comida.

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Ainda estou passando por esse processo de redescoberta. Continuo tratando o transtorno alimentar. No momento, ele está muito ligado a criança que eu era quando lidei com ele pela primeira vez. Quando você vive com esse problema por muito anos, você tem maneiras diferentes de reagir ao mesmo sentimento. Hoje posso deixar de comer por um dia e vou sentir a mesma fraqueza física, mas vou lidar diferente. Sei que sou mais forte do que já fui, tenho mais apoio do que tive porque já passei por aquilo. Ainda tenho um pouco de medo de comer, mas posso dizer que às vezes tenho prazer na comida. Ainda é uma insegurança para mim, mas tento fazer com que isso não pare a minha vida de novo. Eu sou muito mais do que meu transtorno alimentar.”

Cozinhar é parte do tratamento do transtorno alimentar

Transtorno alimentar é a relação patológica que uma pessoa tem com o ato de comer, de se alimentar. “Pode ser tanto uma restrição como uma compulsão”, fala Malu de Falco, psiquiatra com especialização em transtornos alimentares de São Paulo (SP). “A pessoa pode ter um grande medo de ganhar peso ou daquilo que come, então para de se alimentar ou o faz muito pouco”. Os tipos mais comuns são a anorexia, que a pessoa deixa de comer ou diminui drasticamente as porções; bulimia, em que o paciente passa a expurgar o que consome, seja forçando o vômito ou usando laxativos; e a compulsão, em que o indivíduo faz grandes consumos calóricos em um espaço muito curto de tempo e, logo após, sente uma vergonha tremenda.

Segundo Malu de Falco, quando uma pessoa deixa de comer, o corpo começa a perder fonte de energia e, assim, a se “consumir”.

“Há uma perda da musculatura, tanto dos braços e pernas como dos órgãos, por exemplo”, fala a psiquiatra. A anorexia pode causar a interrupção da menstruação, além de problemas cardíacos. “É o transtorno alimentar que mais mata”, diz a especialista.

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As causas de um transtorno alimentar são multifatoriais. “Cada paciente é um caso. Há o componente genético, a pressão dentro de casa. Um trauma relacionado a comida também pode levar a um distúrbio”, explica Malu.

O tratamento para transtornos alimentares é um acompanhamento que inclui um psiquiatra, psicólogo e um nutricionista comportamental. E lidar com a comida é uma parte dessa jornada para lidar com o distúrbio. “O exercício de olhar para um prato de comida, entender suas texturas, é uma maneira de dessensibilizar a relação com os alimentos. Ajuda a entender que aquilo é o que te mantém vivo”. Cozinhar também é recomendado para pessoas com transtorno alimentar. “Há estudos que dizem que, quando você cozinha para comer, você consome com mais consciência.”

Além disso, o processo de preparar a própria comida ajuda a “desligar” o cérebro por algum tempo. “Pode ser terapêutico, porque é uma atividade manual em que usa os sentidos e exige atenção plena no momento, te deixa presente, e impede que seu cérebro fique ruminando o que passou ou o que vai acontecer. Interrompe esse ciclo”.

Malu afirma que, quando falamos sobre transtorno alimentar, não se usa a palavra “cura”, mas de remissão. O tratamento, no entanto, não é para a vida toda. “Os profissionais preparam o paciente para que, no futuro, ele possa retomar o tratamento caso perceba o retorno dos sintomas. Caso tenha uma recaída, ele procure ajude.”