Em 91 anos de vida, Elza Soares foi sinônimo de força feminina
A cantora Elza Soares morreu aos 91 anos nesta quinta-feira (20), no Rio de Janeiro. A informação foi confirmada pela assessoria de imprensa da cantora em suas redes sociais. A cantora, teria teoricamente nascido em 23 de junho de 1930, no entanto, tudo não passava de fachada.
A data foi escolhida só como uma forma de emancipá-la e garantir o casamento quando ela ainda tinha 13 anos de idade. A cerimônia, obviamente, foi forçada. Quanto à data oficial… não se sabe ao certo o ano exato de seu nascimento. Esse é apenas um dos detalhes da vida extraordinária da cantora, que, principalmente após sua morte, segue um símbolo de força e resistência.
Aliás, ao falar de força feminina é impossível não pensar imediatamente nas vezes em que Elza trouxe à tona discussões sobre raça, violência doméstica e feminismo muito antes dos assuntos dominarem as hashtags das redes sociais, uma demonstração clara do porquê ela se tornou referência muito além da música.
E como vivemos uma fase de efervescência política e social, nada melhor do que exaltar - e muito -, as personalidades que colaboram para uma discussão objetiva e poderosa do que precisa mudar para vivermos em um mundo mais igualitário de verdade. Por isso, separamos alguns detalhes da vida da cantora que reforçam o posicionamento que conquistou a música e a transformou em um ícone completo.
1.Noiva criança, mãe adolescente
Elza Soares casou pela primeira vez, a mando do pai, quando tinha entre 12 e 13 anos. Teve o primeiro filho na mesma fase, e o segundo, com 14. Dos sete filhos que teve ao longo da vida, perdeu 3, sendo que dois, ao que contam os relatos, foram de fome. Mãe desde muito jovem, viúva aos 21, Elza precisou lidar com a maternidade ainda criança e com o sofrimento de perder um filho, ainda adolescente. O pior de tudo era tê-lo feito por conta da fome, o que, no fim das contas, virou um de seus marcos na carreira como cantora. Quando viu dois filhos acamados por pneumonia, sem dinheiro para comprar os remédios, ela se inscreveu escondida da família no programa musical de Ary Barroso na Rádio Tupi. Ao ser questionada de onde vinha, ela disse, sem pensar duas vezes: “Do planeta fome". Sua participação lhe rendeu um prêmio em dinheiro, imediatamente convertido em remédios para os filhos. Um deles reagiu à medicação o outro, infelizmente, morreu.
2.Fuga e fúria na década de 1960
Foi em 1963 que Elza lançou uma música que, à época, foi vista como polêmica. Em “Eu sou a Outra", ela falava sobre o romance com o então astro do futebol Mané Garrincha, que era casado. A música enfureceu a sociedade conservadora do país e o romance foi considerado um verdadeiro escândalo. Entre uma relação extra-conjugal, o fim do casamento de Garrincha e o casamento do jogador com Elza, a sua imagem sempre foi de vilã. Enquanto isso, crescia no país a força da ditadura militar e a perseguição dos artistas, que fazia a oposição em peso. Sua mansão com o astro do futebol acabou sendo metralhada no processo e, com medo, os dois decidiram se autoexilar em Roma, na Itália, onde viveram por 6 anos.
3.Violência dentro de casa
O discurso contra a violência doméstica não surgiu do nada. Ao falar de Garrincha, Elza gosta só de lembrar dos momentos felizes, mas é fato que a história do casal foi repleta de altos e baixos. Por 16 anos, a cantora precisou lidar com os abusos, tanto físicos quanto morais, do marido, que era alcoólatra. Em um momento considerado ápice da crise na relação dos dois, Elza perdeu a mãe em um acidente de carro enquanto o jogador dirigia alcoolizado. A relação ficou abalada e os dois viveram um tempo separados antes de reatarem a relação. O casamento terminou oficialmente em 1982, por conta do comportamento abusivo e violento do jogador, que morreu um ano depois de cirrose.
4.Anonimato e retomada da carreira
Passando por períodos de depressão e descaso da gravadora na década de 1980, Elza caiu quase que no anonimato enquanto se apresentava nos Estados Unidos e na Europa, cogitando, inclusive, terminar a carreira de vez. Isso, sem contar, as turbulências da vida pessoal, com o término da relação com Garrincha e o luto pela morte do jogador, pouco depois. Foi o amigo Caetano Veloso que a fez retomar o amor pela música e a paixão pelos holofotes, com o convite para participar do seu álbum 'Velô’, de 1984.
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5.Cantora do Milênio
Mesmo com uma carreira tão conturbada e uma vida pessoal mais ainda, Elza brilhou quando se fala em música. Não sem motivo foi escolhida como a Cantora do Milênio pela BBC, em 1999, firmando o seu lugar como uma das maiores sambistas do Brasil. Apenas alguns anos depois, em 2003, ela levava para casa também um Grammy Latino pelo álbum ‘Do Cóccix ao Pescoço', outra grande conquista de sua carreira.
6.Original 50+
Para Elza, idade era só um número. Sempre dispensando qualquer ideia pré-estabelecida ou preconceito sobre a idade que têm (ou não tem mais), ela seguiu fazendo música sem se preocupar muito com o que público ou a crítica pensaria a respeito. Tanto que foi apenas depois de 50 anos de carreira que Elza lançou o seu primeiro álbum completamente original, ‘A Mulher do Fim do Mundo', em 2015. O lançamento a colocou, mais uma vez, como um destaque no cenário musical brasileiro, agora como uma verdadeira estrela pop.
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7.'Planeta Fome’
Elza dizia que prefere sempre olhar para frente, mas o passado é algo que ela prefere não esquecer. Tanto que em um de seus álbuns mais recentes, chamado ‘Planeta Fome', ela fala sobre o período que considera o mais humilhante da sua vida: quando tinha 18 anos e passava fome com os filhos e o marido. Abrir a conversa sobre um período tão complicado é o que faz uma referência de resiliência e de força já que o assunto se tornou uma de suas bandeiras: as barreiras que teve que superar para se estabelecer como cantora, as dificuldades por ser mulher negra, a luta da comunidade pobre brasileira e o que ela espera para o futuro.