Mulheres são humilhadas ao comprovar menstruação em cenário atroz de pobreza menstrual
Em um caso chocante apurado pelo Yahoo na cidade de Americana, interior de São Paulo, mulheres denunciaram que foram obrigadas a comprovar que estão menstruadas para ter acesso a injeções anticoncepcionais em Unidades Básicas de Saúde.
A injeção é trimestral e deve ser aplicada na data correta, e as mulheres ouvidas pela reportagem relataram que, quando voltavam à UBS para receber uma nova dose, precisavam abaixar as calças para provar que de fato estavam menstruadas.
Os relatos foram inicialmente divulgados pela ex-vereadora da cidade, Maria Giovana Fortunato (PDT-SP). Ao Yahoo Notícias, Maria Giovana contou que o caso foi descoberto por um grupo de mulheres. Elas trabalhavam na distribuição de absorventes para mulheres em situação de vulnerabilidade. Ao longo do mês de março, o grupo fez encontros para falar sobre violência doméstica. A partir das conversas, as mulheres afirmaram que não conseguir tomar o anticoncepcional é, também, uma situação de violência para elas.
A Secretaria de Saúde negou as acusações das mulheres, mas é fato que o cenário de pobreza menstrual assola o Brasil, com taxação arbitrária de produtos de saúde e higiene para mulheres, falta de informação e acesso e um índice de 20% de jovens que já deixaram de ir à escola por falta de absorvente.
Humilhação e crueldade
Não é preciso ser mulher para imaginar a humilhação e dor que as afetadas por essa política sentiram ao ter que abaixar as calças e mostrar sangue menstrual para terem direito a um anticoncepcional garantido por lei. O acesso à saúde gratuita, direito garantido pela constituição brasileira, não é simples para as mulheres, especialmente aquelas que sofrem com o racismo, a gordofobia e o preconceito de classe.
De acordo com dados do instituto Trata Brasil, uma em cada quatro mulheres no país não têm acesso adequado a infraestrutura sanitária e saneamento. A falta desses serviços atinge mais de 30 milhões de brasileiras, o que reforça a desigualdade de gênero, a saúde, o acesso à educação e a renda total por ano. A falta de saneamento é a principal causa de doenças no sistema gastrointestinal, por exemplo, e que levam mulheres a se afastarem por, no mínimo 3,5 dias ao ano de atividades como trabalho e escola.
O acesso à saúde se torna ainda pior no caso de mulheres negras. De acordo com o guia Mulheres Negras, Acesso à Saúde e Racismo, desenvolvido pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, mulheres pretas sofrem de forma desproporcional com violência obstétrica, acesso a saneamento básico, informação de qualidade, oferta de medicamentos e possuem menos acesso a convênios particulares para demandas específicas. "Hoje 80% da população negra brasileira depende exclusivamente do SUS para atender todas as suas demandas de saúde (ONU, 2017). Para que não haja desigualdade de oferta entre essas pessoas, é preciso avanço na organização de rede regionalizada e da articulação da saúde com as demais políticas públicas", explica a cartilha. A cada 100 mil mulheres pretas que deram entrada em uma unidade de saúde para ter seus filhos/as entre 2008 e 2017, 22 morreram. Esses dados estão diretamente ligados à falta de cuidado com a mulher em políticas públicas, especialmente mulheres marginalizadas.
Para mulheres trans, o cenário é ainda mais desolador. De acordo com pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, 6% das pessoas trans brasileiras foram expulsas de casa com menos de 13 anos de idade, e 91% não concluíram o segundo grau. A expectativa de uma mulher trans no Brasil é de apenas 35 anos, e cerca de 90% da população trans encontra na prostituição a única forma de sobreviver. Dentro desse contexto atroz, é insuportável imaginar a dor de uma pessoa trans que, em uma UBS em busca de um direito assegurado pela Constituição, precisa abaixar as calças para mostrar seu sangue em público.
Conservadorismo
A falta de acesso a anticoncepcionais, mais do que uma falta de políticas de saúde pública, é um plano conservador para o controle dos corpos das mulheres. Em um país no qual planos de saúde ainda exigem que marido autorize inserção do DIU em mulheres casadas, é evidente que a falta de acesso a itens de saúde básicos como preservativo é uma diretriz misógina de controlar politicamente os corpos das mulheres, tirando a autonomia que o feminismo e movimentos de esquerda conquistaram com muito custo.
A agenda conservadora e religiosa no Brasil é tão extrema que a injeção anticoncepcional ainda é vista como um método abortivo, na tentativa de impedir que as mulheres possam ter mínima autonomia sobre seus ciclos menstruais. Vale lembrar que métodos anticoncepcionais como a injeção e a pílula do dia seguinte não são abortivos, e são direitos previstos por lei.
Métodos anticoncepcionais como a injeção e a pílula se tornam ainda mais importantes com a misoginia flagrante em práticas como o stealthing, termo em inglês que define quando um dos parceiros remove o preservativo durante a relação sexual sem o consentimento do outro. Mulheres em casamentos abusivos também são vítimas de violência por parte de seus parceiros caso desejem utilizar métodos anticoncepcionais como a camisinha, e em muitos casos a injeção e a pílula são as únicas tentativas de manter a autonomia de seus corpos e evitar gravidez indesejada, mesmo que o problema das DSTs continue.
Em vez de focar em planos de educação sexual, o Brasil atual prefere focar no discurso da "abstinência". A chamsda "abstinência sexual" passa por um projeto de governo e é mais atual que nunca. Em 2020, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, iniciou a campanha “Tudo tem seu tempo: adolescência primeiro, gravidez depois” para incentivar os jovens a não fazerem sexo. A iniciativa foi vista como problemática e até mesmo uma imposição da doutrina evangélica. Muitos acreditam que a contracepção já seria um aborto.
Pobreza menstrual
Ainda pouco discutida no Brasil, a pobreza menstrual é um problema sistêmico avassalador, que perpassa questões de gênero, raciais e de políticas públicas ligadas à dignidade humana. O fenômeno descreve uma série de violações de direitos humanos que afetam pessoas que menstruam, indo desde a escassez de produtos higiênicos até questões de políticas públicas como saneamento básico e distribuição de água.
De forma geral, a pobreza menstrual parte de violências como:
Falta de acesso a produtos adequados como absorventes descartáveis, coletores menstruais, papel higiênico, sabonete, roupas limpas;
Questões estruturais como saneamento básico, coleta de lixo, ausência de banheiros seguros, eletricidade, água;
Falta de acesso a medicamentos e atendimento médico;
Falta de informações sobre saúde menstrual, ciclos menstruais e funcionamento do corpo;
Tabus e preconceitos sobre menstruação, resultando em segregação;
Questões econômicas, como tributação sobre produtos menstruais e a mercantilização de preconceitos em prol do capitalismo, como venda de produtos como sabonetes íntimos anti odor;
Efeitos colaterais da pobreza menstrual sobre a vida econômica e social das pessoas que menstruam.
Com a ausência do estado no combate destes determinantes sociais, ONGs e cooperativas de pessoas físicas começaram a preencher essa lacuna com distribuição gratuita de absorventes e outros produtos de higiene básica.
Dados mostram que o problema é urgente e sistêmico
É impossível solucionar a questão da pobreza menstrual apenas com a distribuição gratuita de absorventes e a conscientização da população sobre o assunto. O problema é sistêmico e envolve a aparelhagem pública do estado, que precisa cuidar de assuntos como saneamento básico de periferias, áreas rurais e populações ribeirinhas; fornecimento de água e cuidado com possíveis contaminações de rios e nascentes; fornecimento de energia elétrica de forma acessível; banheiros com estrutura mínima em escolas e locais públicos; fim dos impostos sob produtos de higiene feminina; coleta de lixo emergencial e outras questões de estrutura social e política.
De acordo com uma pesquisa de 2021 da Espro (Ensino Social Profissionalizante) ao lado da Inciclo, ao menos 20% de jovens entre 14 e 24 anos já deixaram de ir a escola por falta de absorventes. Dados da UNICEF apontam que ao menos 700 mil meninas vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em casa, e 4 milhões não têm acesso a itens básicos de cuidados menstruais. 42% das mulheres já ficaram mais do que o tempo indicado com o absorvente para economizar. O índice sobe para 45% entre pessoas pretas com até dois salários mínimos.
Precisamos de respeito
O caso das mulheres obrigadas a abaixarem as calças é apenas mais um capítulo nesse cenário triste e longevo de violência contra o feminino. A gravidade da situação é tanta que a Secretaria da Saúde, ao negar o fato, exigiu os nomes das denunciantes mesmo após as mulheres envolvidas pedirem para não serem identificadas.
Em um Brasil no qual as instâncias governamentais estão mais preocupadas em fazer uma caça às bruxas em vez de focar no combate à misoginia e pobreza menstrual, é flagrante que existe um caminho longo e doloroso a ser trilhado para as próximas gerações de brasileiras em busca de igualdade de gênero.