'Molly - Bloom' leva ao teatro catarse com o orgasmo das falas de 'Ulysses', de Joyce

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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Eu acendi a luz sim porque ele hĂĄ de ter gozado umas trĂȘs ou quatro vezes com aquela coisona monstruosa dele eu achei que a veia ou sei lĂĄ que meleca de nome que aquilo tem ia estourar", diz Molly Bloom, em certo trecho de seu monĂłlogo, no derradeiro episĂłdio de "Ulysses", de James Joyce, que serĂĄ levado a partir desta quarta-feira ao palco do Sesc Avenida Paulista, em SĂŁo Paulo.

A personagem, uma das mais importantes da histĂłria da literatura, Ă© vertiginosamente vivida e entendida pela atriz Bete Coelho, que, aos seus 60 anos, rola na cama, se esfrega nos gradis, arfa, goza e atĂ© peida, com efeito de sonoplastia, levanta a saia, abre e fecha as pernas, afaga os seios e grita para incorporar magistralmente uma mulher ali na casa dos seus 30 anos, uma balzaquiana, no frenesi desse impulso sexual, sem despertar qualquer estranheza ou ruĂ­do no pĂșblico.

"É uma trepada", ela define a peça, que teve um dos seus Ășltimos ensaios acompanhado por esta repĂłrter na semana passada, num galpĂŁo no bairro paulistano de Perdizes.

Não hå mise-en-scÚne. Só uma cama enorme que absorve todo o palco com sua estrutura de ferro, colchão e lençóis. "Uma masturbação intensa. Um hormÎnio muito aflorado."

As duas guerras mundiais ainda nĂŁo haviam definido os rumos da histĂłria atual quando essa mulher, essencialmente contemporĂąnea, se mostra dona de seu nariz, num fluxo de consciĂȘncia meio adormecido, meio acordado, para tomar de arrombo a narrativa ambientada na Dublin de 16 de junho de 1904.

Em texto adaptado do 18Âș episĂłdio de "Ulysses", que nĂŁo tem mais do que um ponto final, ali no meio do relato, ela volta Ă  infĂąncia, trata da relação com o pai, lembra a filha, o filho que morreu e, principalmente, num clima de tensĂŁo sexual que domina sua fala, trata do adultĂ©rio, esse tambĂ©m cometido pelo marido, que fez com que Leopold Bloom, um Ulysses Ă s avessas, retardasse seu retorno para casa, depois das famosas 16 horas narradas no romance, por saber que estava sendo traĂ­do por sua mulher.

"Molly Bloom Ă© o contrĂĄrio da PenĂ©lope, que nega todos os pretendentes e aguarda pelo marido numa espera sem esperança", avalia Coelho, ao comparar a histĂłria de James Joyce com a "Odisseia", de Homero, que a inspirou com a saga de Odisseu, o nome grego de Ulysses, no mundo helĂȘnico -no regresso da Guerra de Troia Ă  ilha de que era rei, Ítaca, e onde havia ficado sua mulher, a fiar e aguardar.

Nesse contexto, Leopold Bloom Ă© um Ulysses moderno, um judeu irlandĂȘs, a partir do qual Joyce quer, em sua obra-prima, retratar aspectos do ser humano e, a partir deste, englobar peças do carĂĄter de toda a humanidade.

"O livro foi lançado hĂĄ cem anos e continua mais ousado, mais radical em sua invenção do que quase tudo o que a gente publica. O projeto, a coragem, Ă© uma coisa rara de se encontrar. Justamente porque ele nĂŁo Ă© sĂł isso, mas porque usa isso para a finalidade do romance, que Ă© representar pessoas, consciĂȘncias e convĂ­vios de pessoas e consciĂȘncias", avalia o tradutor e professor Caetano Galindo, que ganhou o prĂȘmio Jabuti de 2013 por sua tradução da obra para o portuguĂȘs.

"Estou muito encantado com esse espetåculo, com o resultado", diz ele, sobre o monólogo, dirigido por Coelho em parceria com Daniela Thomas. "O texto final consegue gerar a imagem desse casal. Ele acaba se transformando e, quando chega a essa estranha e ambígua declaração de amor da Molly, a gente conhece o casal, conhece o amor."

Galindo se refere Ă  ideia que partiu de Coelho de iniciar a peça com um trecho do final do 17Âș episĂłdio, que Ă© quando Bloom, interpretado por um afiado Roberto Áudio, chega em casa. JĂĄ com sono, seu fluxo de pensamento Ă© mais conturbado do que o monĂłlogo da mulher que vem a seguir, e, dominado pelo sono e pelo cansaço, tem a função de ambientar o pĂșblico no contexto da histĂłria.

NĂŁo que seja imprescindĂ­vel conhecer toda a narrativa para ser impactado pela peça. A experiĂȘncia literĂĄria levada ao palco Ă© capaz de modificar qualquer plateia justamente pela dificuldade que herda de "Ulysses", que tem em sua complexidade a chave para essa nova maneira de ler o mundo.

"O livro foi publicado em 1922, mas as açÔes se passam em 1904. Fala de racismo, de preconceito, de xenofobia, prevĂȘ o antisseminismo que viria a eclodir na primeira metade do sĂ©culo 20 na Europa", diz Galindo, que foi consultor de dramaturgia da montagem.

"Na minha cabeça ele era um senhor inatingível, com um tipo de formação muito elevada. Mas parecia que a gente se conhecia hå anos, e ele é um menino", diz Coelho, sobre a amizade que nasceu com o tradutor.

A relação próxima também com Thomas foi essencial para a identidade de "Molly - Bloom". "Esse espetåculo é o rosto da Bete", conta a diretora, que, para dar conta de explorar as diversas potencialidades do rosto da amiga em cena, pÎs um espelho ao fundo da cama e preparou uma série de telas que vão captar no palco todos os detalhes da interpretação de Coelho.

SerĂĄ a primeira vez que a atriz nĂŁo terĂĄ a preocupação de se virar de frente para a plateia para fisgar o olhar, jĂĄ que sua personagem terĂĄ a histĂłria narrada por trĂȘs artifĂ­cios cĂȘnicos diferentes -o rosto real, o seu reflexo e a sua projeção.

Todo esse trabalho tĂ©cnico tenta dar conta da importĂąncia conceitual do monĂłlogo de Molly para a histĂłria como um todo. É nesse momento que a trama, narrada e vivida por um personagem masculino praticamente sem reconhecer a presença da mulher, tenta dar conta, pela potĂȘncia desse fluxo de consciĂȘncia, de tudo o que nĂŁo foi dito por Joyce atĂ© entĂŁo. Uma espĂ©cie de vingança de Molly Bloom, que toma para si a palavra final da histĂłria.

Newsletter Tudo a ler Receba no seu email uma seleção com lançamentos, clĂĄssicos e curiosidades literĂĄrias; aberta para nĂŁo assinantes. *** "Engraçado que o 'Ulysses' carrega uma impessoalidade, o narrador estĂĄ muito afastado, deixa os personagens se expressarem sozinhos, nĂŁo Ă© o livro que conduz a sua opiniĂŁo de uma forma muito clara", analisa Galindo. "De repente nesse Ășltimo episĂłdio acontece exatamente o contrĂĄrio, ele entrega a palavra a uma pessoa superconvicta de que vocĂȘ deve se convencer do que ela estĂĄ dizendo. EntĂŁo Ă© uma manobra retĂłrica muito interessante, uma manobra literĂĄria fenomenal e uma manobra Ă©tica."

"NĂŁo Ă  toa o texto Ă© especialmente famoso. Esse final em que ela pega no sono e mistura memĂłrias na cabeça, faz as pazes com o marido, de certa forma faz as pazes com os homens, com o lado masculino da vida. Essa Ășltima pĂĄgina Ă© extremamente famosa e um texto muito lindo. É difĂ­cil ler aquilo e nĂŁo se comover."

Se o texto de Joyce vai da tensão sexual à comoção, ele ainda assume um viés político às vésperas das eleiçÔes presidenciais deste ano. "Seria muito bom estar em cartaz até as eleiçÔes. E depois a gente vai continuar para comemorar", afirma Coelho, sem esconder o voto em Luiz Inåcio Lula da Silva. "Eu digo sim, aperta o 13", completa Thomas, não sem antes refletir sobre o que ficou engasgado na garganta da classe artística durante a pandemia.

"É um Ăłdio contra tudo isso que a gente estĂĄ vivendo. É atĂĄvico. O teatro nasce com Ăłdio, com raiva, o desprezo pela mentira. O teatro vem junto com a humanidade. É uma pulsĂŁo de vida, de existĂȘncia. Quando vocĂȘ nega isso, vocĂȘ nega a vida. Quando a gente Ă© impedido, a gente percebe como a gente Ă© doente de teatro."

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