Ameaças e ataques 'derrubam' ex-futura-ministra da Saúde. Normal?
Com o país perto de atingir 280 mil mortos por covid-19, o presidente Jair Bolsonaro por pouco não se dobrou aos fatos e, depois de meses insistindo com um general disposto apenas a combater a pandemia na base da cloroquina e outras charlatanices, quase escolheu para o Ministério da Saúde uma médica com formação na área e, pasmem!, plano de ação. Seria uma revolução e tanto para quem só agora atentou para a importância do uso de máscara, não fosse um detalhe: em vez de moral, a ex-futura-ministra ganhou na véspera uma frigideira besuntada de óleo.
Pelo que contou nas entrevistas a GloboNews e CNN Brasil, Ludhmila Hajjar, médica cardiologista, estava disposta a comprar a briga e topar o desafio. Estudava, sim, trocar mais de cem pacientes, a maioria contaminada pelo coronavírus, por 210 milhões de enfermos. Nós.
Antes, fez aquela pergunta básica que todo mundo com um mínimo de apreço ao currículo e à própria biografia faz antes de qualquer entrevista de emprego: deixou claro como pensa em trabalhar. E disse que tinha pontos de divergência com o governo em relação a tratamento precoce e medidas de isolamento social. Tudo bem?
No governo Bolsonaro, não.
Segundo apurou o site Poder360, o ex-futuro-chefe da ex-futura-ministra estava preocupado. “Você não vai fazer lockdown no Nordeste para me foder e eu depois perder a eleição, né?”, teria dito Bolsonaro.
No mesmo fim de semana, a vida da doutora virou um inferno. Plantonistas do gabinete do ódio correram para colocar no ar falas distorcidas da ex-futura-ministra, que teve o passado revirado e passou a sofrer todo tipo de ameaças. Como se ela fosse a encarnação do próprio vírus. A ponto de alguém tentar invadir o hospital onde estava hospedada para sabe-se-lá o quê.
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Antes, Hajjar foi elogiada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para quem capacidade técnica e diálogo político com os inúmeros entes federativos e instâncias técnicas, necessárias para o bom desempenho à frente da pandemia, eram qualidades observadas na doutora.
A reação dos terraplanistas sanitários foi tão violenta que a missão foi abortada.
A médica que queria ampliar o leque de pacientes com o cargo de ministra teve que colocar na conta a sua própria segurança. Pode agora trocar figurinha com Luiz Henrique Mandetta, que no tempo em que expôs publicamente as divergências com o presidente só não recebeu como recado do chefe a cabeça de um cavalo em sua cama.
Após pesar e fugir da encrenca, a médica conseguiu, na segunda-feira 15, dizer o que ninguém ao redor do presidente tem coragem de manifestar. Disse que os kits covid, uma marca da gestão Eduardo Pazuello, são “pura enganação” e foram usadas inclusive por quem morreu. “Agora é hora de reflexão. Choque de realidade. Acreditar no que a ciência comprova. O negacionismo trouxe novos casos”, disse a médica, para quem vacina boa é a que chega nos braços.
O surto de bom senso em meio ao surto de Covid fez com que ela fosse tratada como uma espécie de cavalo de Troia cuja entrada no Planalto foi barrada a tempo.
Enquanto os criminosos que a ameaçaram comemoram, Pazuello segue balançando no cargo, mas ainda fala como ministro.
Na vaga para seu eventual substituto obediência cega às ordens do capitão e baixa preocupação com a própria integridade física são habilidades agora recomendadas. Segundo o presidente, isso faz parte.
Até lá, fica como rastilho de pólvora as declarações da ex-futura-ministra, que em um país normal, que se espanta com o estado das coisas e tem pressa, teria dado motivos suficientes para derrubar qualquer presidente com uma só das entrevistas.
Ela diz não ser absurdo pensar que em breve o país atingirá 500 mil mortes por covid-19. Com paus, pedras e tentativa de invasão, os seguidores bolsonaristas mais fieis repetem o mantra do grande líder: e daí?