Com apoio a golpe, Cássia Kis e Regina Duarte deixam para trás lições de 'Roque Santeiro'
Em 1985, se iniciou a exibição daquele que se tornaria um dos maiores sucessos da televisão brasileira: "Roque Santeiro". Criada por Dias Gomes e escrita por ele e Aguinaldo Silva, a trama deveria ter estreado bem antes, em 1975. Porém, por causa de seu forte teor social e político, foi censurada pela ditadura militar. Com o regime chegando ao fim e a transição para a democracia em andamento, a trama pôde enfim ser exibida.
Uma das personagens da história, Lulu (Cássia Kis), era uma jovem que supostamente viu o santo Roque (José Wilker) morto, o que transformou sua vida. Cheia de sonhos, ela se casou com o comerciante Zé das Medalhas (Armando Bórgus) e passou a ter uma vida sofrida, sendo feita de prisioneira por ele. Em determinado momento, ela decidiu revolucionar sua vida para se libertar dessas amarras. E nesta quarta-feira (2), lá estava a mesma intérprete da personagem, Cássia Kis, participando de uma manifestação antidemocrática.
É, para dizer o mínimo, um paradoxo gritante que uma atriz que tenha sido estrela de uma novela que foi censurada e cuja trama de seu núcleo falava justamente sobre repressão e liberdade, anos depois seja a pessoa que participava de live fazendo comentários homofóbicos e que mostre desprezo pela democracia. Ela não está sozinha.
Regina Duarte, que viveu Viúva Porcina, a protagonista maior de "Roque Santeiro", também parece ter aprendido nada das lições que a história deixou, ao também se envolver com movimentos autoritários.
Fake News
Curiosamente, "Roque Santeiro" é justamente uma história como uma mentira pode mudar a vida de dezenas, centenas ou até mesmo milhares de pessoas. O folhetim gira em torna da cidade de Asa Branca, que foi atacada no passado por um grupo de bandidos, o que levou todos a fugirem.
O artesão de santos de barro Roque teria ficado para trás para lutar contra os criminosos, o que teria resultado em sua morte. Lulu, ainda criança, teria visto o corpo. Com isso, espalhou-se a lenda de que Roque era um herói, e a cidade o elevou ao status de santo. Figuras políticas também cresceram e começaram a lucrar com o mito do santo Roque.
Cássia Kis rezando ajoelhada em manifestação golpista
*fundo do poço* pic.twitter.com/QRfS1r9aPe— Déia Freitas (@NaoInviabilize) November 2, 2022
Acontece que o personagem não morreu coisa nenhuma e a lenda era uma grande trapaça. Quando ele volta, a situação de todos que engabelaram os incautos da cidade vira um martírio.
É um quadro que encontra eco na realidade atual: como fake news podem manipular as massas e como os poderosos se aproveitam disso, seja por lucro ou para promover o falso moralismo que só serve a quem está em posição de poder.
"Roque Santeiro", uma história sobre o parasitismo que a elite e que gente mal-intencionada rege sobre quem é mais fraco. Tem muito humor? Tem! É contado de forma leve. Mas é também um retrato tragicômico do Brasil.
Carreiras e história deixadas para trás
Mas se a novela é um retrato espalhafatoso da realidade nacional, as posições atuais de Regina e Cássia descambam para o poço daquilo que é mais deprimente.
Duas atrizes que viveram o auge da ditadura e que hoje pedem a volta da repressão já seria por si só de se espantar. O fato das duas terem estado naquela que é uma das tramas que melhor expressa o anseio por liberdade, cuja própria realização foi originalmente barrada pela mesma repressão, é desalentador.
Viúva Porcina, personagem de Regina Duarte, era uma mulher que nunca foi casada com Roque, mas inventou para todos que foi. Com isso, ganhou poder e fama. Ou seja, uma rainha das mentiras que manipulou a todos como queria. Hoje, quando se tenta seguir a atriz no Instagram, a rede primeiro questiona se o usuário quer mesmo fazer isso, sendo que a intérprete é uma grande disseminadora de fake news.
"Roque Santeiro", microcosmo do Brasil que era, também buscou apresentar uma série de assuntos que estão em evidência. A luta da expressão sexual contra o moralismo, representado nos conflitos entre as dançarinas da boate Sexus e as beatas lideradas por dona Pombinha Abelha (Eloísa Mafalda).
Existia também o núcleo do padre Albano (Cláudio Cavalcanti), dono de ideias progressistas, que pretendia expor a farsa de Roque e levar a igreja por um caminho mais libertador, o que causou embates com o padre Hipólito (Paulo Gracindo). O personagem de Cavalcanti chegou a ser xingado na história de, veja só, “padre comunista”.
A trama de Dias Gomes e Aguinaldo Silva tinha uma ironia ácida, certeira. Era engraçada, saga, escandalosa quando precisava ser. Mostrava o Brasil como ele era, no estilo farsesco, até mesmo patético como certas questões se impõem na sociedade.
Décadas depois, quando se vê duas atrizes defendendo muito ou quase tudo daquilo que a trama criticava, a graça acaba. Não há riso, não há alívio cômico. Há apenas o gosto amargo de lições que foram dadas, e prontamente ignoradas.