'Fabelmans' e Spielberg puxam onda de filmes que reviram passado de diretores

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Trancado no escuro do armĂĄrio, um menino de seis anos segura com as mĂŁos um feixe de luz intenso, que dança criando cores e imagens. Seus olhos azuis, vidrados, observam com fascĂ­nio a histĂłria que se desenrola, numa sequĂȘncia de poucos segundos que traduz o que Ă© a tal magia do cinema.

Em algum lugar do passado, hå aproximadamente 70 anos, Steven Spielberg foi essa criança, sem imaginar que um dia ele próprio faria filmes capazes de despertar o mesmo sentimento nas pessoas. Um deles é "Os Fabelmans", que chega agora aos cinemas e de onde essa mesma cena vem.

Provavelmente nĂŁo foi exatamente assim, com trenzinhos descarrilhando sobre a palma das mĂŁos de um jovem Spielberg, que ela se deu. Mas a trama opera num limiar entre realidade e ficção que guiou uma porção de cineastas que, no Ășltimo ano, decidiram pĂŽr o prĂłprio passado nas telas.

Alejandro GonzĂĄlez Iñårritu e "Bardo, Falsa CrĂŽnica de Algumas Verdades", James Gray e "Armageddon Time", Sam Mendes e "ImpĂ©rio da Luz", Joanna Hogg e "The Eternal Daughter", Charlotte Wells e "Aftersun", Elegance Bratton e "The Inspection", Lukas Dhont e "Close". Todos esses escavaram memĂłrias pessoais, em diferentes nĂ­veis, e dominaram a Ășltima temporada de festivais e prĂȘmios de cinema.

Um dos favoritos ao Oscar e vencedor do Globo de Ouro de drama, "Os Fabelmans" Ă©, no entanto, o que melhor coroa essa onda de semiautobiografias, jĂĄ que destrincha a vida de um dos maiores diretores americanos de todos os tempos, de alguĂ©m que provavelmente jĂĄ tocou qualquer aficionado por cinema no Ocidente -de "TubarĂŁo" a "E.T.: O Extraterrestre", de "A Cor PĂșrpura" a "A Lista de Schindler".

Escrita em colaboração com Tony Kushner, seu parceiro de "Munique", "Lincoln" e "Amor, Sublime Amor" -e, portanto, alguĂ©m que conhece bem Spielberg-, a trama narra a infĂąncia e adolescĂȘncia do cineasta a partir do alter ego Sammy Fabelman, pegando emprestado diversas passagens que de fato ocorreram e criando fantasias a partir delas.

"Os Fabelmans" abre com a criança na porta de um cinema, com medo dos "homens gigantes" que estå prestes a ver na tela pela primeira vez. Seus pais, papéis de Paul Dano e Michelle Williams, tentam acalmå-lo e não conseguem antecipar o impacto que aquela sessão de "O Maior Espetåculo da Terra", de Cecil B. DeMille, terå no menino.

A partir daĂ­, ele se rende ao cinema e ao faz de conta -substituto de "Spielberg", o nome "Fabelman", afinal, brinca com as palavras inglesas para fĂĄbula e homem. Com a cĂąmera do pai em mĂŁos, Sammy transforma rolos de papel higiĂȘnico em mĂșmias, balas vermelhas em sangue e gangorras cobertas de terra em explosĂ”es de campo de batalha.

Conforme o protagonista vai crescendo, dramas familiares começam a se revelar no lento e ruidoso rodar do celuloide, em filmes caseiros que misturam o romance, o suspense, o horror, a comĂ©dia, a fantasia e a aventura Ă  sua volta. É o mesmo pout-pourri de gĂȘneros que iluminou o caminho de Spielberg rumo ao panteĂŁo de Hollywood.

"Eu penso nesse filme hĂĄ muito tempo, mas nĂŁo Ă© como se eu tivesse decidido fazĂȘ-lo agora porque vou me aposentar ou algo assim", disse o cineasta em painel no Festival de Toronto, de onde o filme saiu com o prĂȘmio principal.

"Quando a Covid-19 chegou, todos nós ficamos com tempo e medo de sobra. No começo de 2020 nem tínhamos ideia de como estaria a arte ou a vida dentro de um ano. Eu senti, então, que precisava resolver e revisitar algumas coisas do meu passado. Era agora ou nunca."

AtravĂ©s da lente de uma falsa ficção, Spielberg emula em seus personagens o comportamento, a carreira e os hobbies de suas figuras familiares. Ele fala do bullying que sofreu no colĂ©gio, de namoradinhas e das experiĂȘncias enquanto judeu nos Estados Unidos. AtĂ© o difĂ­cil divĂłrcio dos pais, que jĂĄ o estimulou a criar "E.T.: O Extraterrestre", aparece com fidelidade.

Esse sentimento de ter pendĂȘncias para resolver, fantasmas para enfrentar, ecoa a justificativa de outro oscarizado para filmar a prĂłpria vida. Iñårritu, quando conversou com este jornal hĂĄ trĂȘs meses, disse que seu "Bardo" tambĂ©m floresceu durante o confinamento imposto pela pandemia.

"NĂłs ficamos mais prĂłximos da nossa fragilidade, passamos mais tempo com nĂłs mesmos. Quando se estĂĄ prĂłximo da morte, gostamos de imaginar como seria a nossa Ășltima jornada", explicou ele sobre as motivaçÔes, destacando que essa safra de semiautobiografias Ă© pontual, nĂŁo uma tendĂȘncia que deve se manter.

Entre vagÔes de metrÎ inundados por ågua e desertos interminåveis pelos quais seus personagens vagam, numa estranha epopeia onírica, "Bardo" mimetiza a jornada de Iñårritu de seu México natal aos Estados Unidos, na imagem de um jornalista transformado em cineasta que, no auge da fama, jå não sabe muito bem o que fazer com ela ou como dosar sua presença na vida pessoal.

Mais calcado na realidade, "Aftersun" também rodou festivais no ano passado e também traduz anseios íntimos de sua criadora -a estreante em longas Charlotte Wells. Ela, no entanto, jå pensava em explorar a própria relação de pai e filha antes de a pandemia chegar, apesar de não achar ruim ver seu elogiado trabalho ao lado de "Bardo" e "Os Fabelmans".

"É estranho de repente ser empacotada com esses cineastas extraordinários, então eu não vou reclamar, estou feliz de ser incluída na lista. Mas de fato muita gente tem teorizado que a pandemia foi uma oportunidade para que artistas parassem e refletissem", diz.

Ainda sem data de estreia no Brasil e esnobado pela crĂ­tica, o novo longa de Sam Mendes, "ImpĂ©rio da Luz", tambĂ©m Ă© fruto do caos que engoliu o mundo nos Ășltimos meses. Nele, o vencedor do Oscar visita o Reino Unido no qual cresceu, entre os anos 1970 e 1980, numa ode ao cinema que nĂŁo agradou tanto quanto a de Spielberg. É fruto de uma "autoavaliação", de um "confronto com as memĂłrias", explicou em material enviado Ă  imprensa.

Na Europa, o belga Lukas Dhont aproveitou a paralisação da indĂșstria para voltar Ă  sua pequena cidade natal e, ao pisar na escola onde estudou, disse a este jornal, em Cannes, que se reconectou com uma parte de si prĂłprio. DaĂ­ nasceu o drama sofrido sobre homofobia e masculinidade tĂłxica "Close", que tem nos medos e inseguranças que ele vivenciou na infĂąncia sua força motriz.

Embates com a própria sexualidade também motivaram "The Inspection", em que Elegance Bratton relembrou seus anos na Marinha americana, enquanto Joanna Hogg foi outra que pendeu para as relaçÔes familiares, com "The Eternal Daughter". "Armageddon Time", por sua vez, teceu um retrato dos anos formativos de James Gray e comparou os Estados Unidos de ùnimos políticos exaltados da década de 1980 com os de hoje.

Mesmo que a pandemia tenha potencializado a tendĂȘncia de cineastas escolherem atores para interpretar eles prĂłprios ou qualquer projeção de si que tenham em mente, a vontade de abrir o passado para o pĂșblico ronda as salas de cinema hĂĄ algum tempo.

No ano passado, Kenneth Branagh venceu o Oscar de roteiro original com "Belfast", retrato do clima de ebulição social que empurrou o diretor e sua família para longe da Irlanda do Norte.

Antes disso, Alfonso Cuarón revisitou seu bairro de nascença em "Roma" e Pedro Almodóvar criou um delicado relato sobre o nascimento do desejo e do anseio artístico em "Dor e Glória", que também ressignifica lembranças pessoais do espanhol.

Mas se estes se anteciparam Ă  pandemia, a leva robusta de autobiografias do ano passado e a atenção que festivais e prĂȘmios tĂȘm dado a ela indica que a Covid-19 parece de fato ter inaugurado um novo normal, um que modificou profundamente a nossa forma de nos relacionarmos com o passado e a memĂłria.

OS FABELMANS

Quando Estreia nesta quinta (12), nos cinemas

Classificação 14 anos

Elenco Paul Dano, Michelle Williams e Gabriel LaBelle

Produção EUA, 2022

Direção Steven Spielberg