Com Covid-19 e anorexia: pandemia agravou casos de transtornos alimentares

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Mudanças no corpo têm mexido cada vez mais com o psicológico das pessoas (Arte: Bárbara Miranda/AzMina)
Mudanças no corpo tĂȘm mexido cada vez mais com o psicolĂłgico das pessoas (Arte: BĂĄrbara Miranda/AzMina)

Por Carina Gonçalves

Instabilidade extrema, falta de controle sobre o que acontece, solidĂŁo, convivĂȘncia extrema com si prĂłpria e o espelho, tempo demais nas redes sociais. Isso descreve a vida da maioria dos brasileiros hĂĄ mais de um ano, mas para as pessoas que enfrentam transtornos alimentares esta Ă© tambĂ©m a descrição de tudo aquilo que tira seu sono e pode disparar a doença - e tornar a pessoa ainda mais vulnerĂĄvel ao coronavĂ­rus.

Mia sentiu no corpo isso tudo: desde o começo da pandemia, passou de 70 kg para 41 kg, com seus 1,64 m de altura. Seu quadro de anorexia, que estava sob controle havia anos, voltou com tudo com o início da pandemia. E quando contraiu a Covid-19, a situação piorou. “Cheguei ao ponto de emagrecer religiosamente cerca de 2 kg por dia”, conta.

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Enfraquecida, ela teve dificuldade para se recuperar da doença. Mesmo em repouso e tomando os remĂ©dios recomendados por cerca de 15 dias, sempre que parecia melhorar, os sintomas voltavam. Mesmo nĂŁo conseguindo ficar de pĂ©, relata que “estava feliz internamente”, pois apesar de estar se sentindo mal o seu corpo estava magro.

Mia é uma entre muitas. Um estudo da Clínica Schoen Roseneck, na Alemanha, com pacientes com transtornos alimentares que tiveram alta em 2019, mostrou que 41,5% tiveram piora nos sintomas. Jå na Austrålia, um estudo revelou um surto de anorexia nervosa entre crianças no início da pandemia. No Brasil, nenhum estudo foi feito sobre o tema, mas relatos como o de Mia mostram que o problema estå rolando por aqui também.

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Outro indĂ­cio do problema Ă© o aumento de outros transtornos mentais, que mais que dobrou com a crise de saĂșde, segundo uma pesquisa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Nesse cenĂĄrio, as mulheres estĂŁo sendo as mais afetadas: 40,5% das mulheres ouvidas por uma pesquisa Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, relataram sintomas de depressĂŁo; 34,9% de ansiedade e 37,3% de estresse.

E quando o assunto sĂŁo transtornos alimentares, mulheres tambĂ©m sĂŁo as mais afetadas. SĂŁo 9 mulheres para cada homem com anorexia e os motivos ainda estĂŁo sendo investigados pela ciĂȘncia, mas a pressĂŁo dos padrĂ”es estĂ©ticos ligados a gĂȘnero estĂĄ entre eles. “A cultura do corpo perfeito pertence a uma representatividade de sucesso e competĂȘncia. Tudo isso estimula a adoção de comportamentos alimentares inadequados, que podem contribuir para a instalação do quadro clĂ­nico dessas doenças”, explica a psicĂłloga e membro da Associação Brasileira de Transtornos Alimentares (ASTRAL) Mireille Almeida.

Apesar das distorçÔes de imagem, os distĂșrbios alimentares nĂŁo estĂŁo associados somente a questĂ”es estĂ©ticas, mas a uma sĂ©rie de fatores psicolĂłgicos e biolĂłgicos. As especialistas ouvidas pela reportagem contam que um deles Ă© a necessidade de controle.

Alimentação (Arte: Bárbara Miranda/AzMina)
Alimentação (Arte: Bårbara Miranda/AzMina)

As pessoas com transtornos alimentares sentem a necessidade de controlar algo quando tudo em volta estĂĄ instĂĄvel, o que torna o alimento a sua Ășnica forma de domĂ­nio sobre a realidade. Imagine como isso nĂŁo fica na pandemia. “Durante o isolamento foi muito complicado, sĂł intensificou, principalmente, por nĂŁo ter tantas atividades; minha cabeça se voltou para controlar e pensar 24 horas na comida”, relata a paulistana Marcella Brincaccio, de 20 anos, que havia acabado de passar na Unicamp e dde terminar um relacionamento abusivo.

“Eu tinha acabado de entrar na faculdade dos meus sonhos e começou a pandemia, imagina a frustração de quem fez cursinho, passou e não pîde aproveitar a faculdade. Isso me fez perceber que não tinha controle de nada, exceto da minha alimentação e do corpo”.

A solidĂŁo e a falta de apoio aparecem tambĂ©m entre os motivos citados pelas entrevistadas para a volta dos transtornos. “Acho que conviver demais comigo mesma me fez voltar a ver o que eu via em mim antes. Muito tempo sozinha, mais tempo com o espelho, saĂ­ da terapia e essas coisas. Eu sĂł voltei a comer depois que peguei covid”, conta Mia.

O agravamento dos casos de saĂșde mental durante o isolamento tambĂ©m estĂĄ relacionado com os transtornos alimentares, conforme explica Cristiane Seixas, psicĂłloga e professora da UERJ. “Todo transtorno alimentar vem acompanhado de uma dificuldade para lidar com as emoçÔes, as relaçÔes familiares e sociais que vĂȘm tanto de antes dele quanto em sua decorrĂȘncia”.

Ela tambĂ©m relata como consequĂȘncia deste problema um “empobrecimento maior da vida”, pois os pensamentos giram em torno da comida e do peso. “EntĂŁo imagine estar trancado em casa apenas com ideias “o que vou comer?” e “como evitar de engoli-lo?”, com todas as mudanças que estavam ocorrendo ao redor destas pessoas”.

Tratamento: jĂĄ era difĂ­cil e piorou

Tratar um distĂșrbio alimentar no Brasil nĂŁo Ă© fĂĄcil. Caso a pessoa procure por internação, o AMBULIM, no Hospital das ClĂ­nicas em SĂŁo Paulo, Ă© a Ășnica clĂ­nica no Brasil inteiro especializada em transtornos alimentares e que oferece tratamento gratuito e, por isso, tem uma fila de espera. “Por falta de opção, geralmente as pessoas se internam em clĂ­nicas gerais, que podem nĂŁo ter profissionais especializados no tema”, conta a psicĂłloga Mireille Almeida.

A ASTRAL coleta informaçÔes sobre a quantidade de profissionais especializados em transtornos alimentares e a sua localização no Brasil. Conforme os dados atualizados em setembro de 2020, existem no paĂ­s 20 lugares pĂșblicos e 27 privados para tratamento, com enorme concentração geogrĂĄfica.

Além da concentração geogråfica, faltam profissionais. São apenas 551 em todo o país e é importante destacar que o tratamento é multidisciplinar, envolvendo nutricionistas, psicólogos, psiquiatras e outros.

Existe ainda a questĂŁo da renda no acesso ao tratamento. Como mais da metade das clĂ­nicas com tratamento sĂŁo privadas, o acesso para a população de baixa renda Ă© limitado. “O tratamento pelo serviço privado Ă© muito caro, porque precisa ter trĂȘs profissionais (nutricionista, psicĂłlogo e psiquiatra), e, como sĂŁo quadros muitas vezes graves, os atendimentos precisam ser frequentes e muitas vezes nĂŁo Ă© possĂ­vel fazer um atendimento por mĂȘs, por exemplo”, diz nutricionista e doutoranda da UERJ Carolina Coutinho.

Com a pandemia e o isolamento social, este cenĂĄrio se agrava. “Este Ășltimo ano tem sido bem tenso de maneira geral para nĂłs psiquiatras que tratamos transtornos alimentares, ansiedade e depressĂŁo. Tem sido muito intenso e a procura bem maior”, relata a psiquiatra Mireille Almeida. O mesmo ocorreu para a nutricionista Carolina: “num primeiro momento, observei uma redução nos atendimentos, mas logo em seguida um aumento da procura”, diz ela. Ambas as profissionais estĂŁo prestando atendimento online e presencial.

Transtornos alimentares (Arte: Bárbara Miranda)
Transtornos alimentares (Arte: BĂĄrbara Miranda)

A baixa quantidade de acesso a atendimento e a profissionais da ĂĄrea ocorre tambĂ©m pela falta de estudos sobre o tema. A questĂŁo nĂŁo tem recebido tanta atenção, o que acaba fazendo com que nĂŁo haja pesquisas de base populacional que mostre a quantidade de casos de pessoas com este problema no paĂ­s e com que nĂŁo se criem polĂ­ticas pĂșblicas para suprir demandas locais para tratamento. “Isso Ă© um problema muito grave, pois normalmente as polĂ­ticas pĂșblicas sĂŁo formuladas atravĂ©s de dados epidemiolĂłgicos a partir da identificação de determinadas demandas de saĂșde que sĂŁo muito prevalentes e muito significativas”, relata a nutricionista e doutoranda da UERJ Carolina Coutinho.

A recuperação com tratamento online

Alimentação (Arte: Bárbara Miranda)
Alimentação (Arte: Bårbara Miranda)

Com risco de contĂĄgio e isolamento social, a principal alternativa de tratamento tem sido o atendimento online. Na procura por acompanhamento profissional, apesar de morar hoje nos Estados Unidos, G.S., de 20 anos, uma estudante brasileira de psicologia na Universidade comunitĂĄria de Triton College que preferiu nĂŁo se identificar, estĂĄ fazendo tratamento por videoconferĂȘncia com um mĂ©dico brasileiro. Esta opção surgiu porque no paĂ­s onde mora os preços para consultas na saĂșde sĂŁo muito caros. Ela tem anorexia e bulimia desde os 12 anos, mas estavam sob controle atĂ© entrar na fase da pandemia.

Ela estava com 70 kg em março de 2020 e em janeiro de 2021 chegou a 59 kg. A sua rĂĄpida perda de peso, de acordo com ela, ocorreu pelo uso de um medicamento psiquiĂĄtrico. No começo, experimentou o remĂ©dio das crianças em seu emprego de babĂĄ, e acabou se tornando um vĂ­cio. AlĂ©m dele, passou tambĂ©m a fumar tabaco e maconha e a ingerir bebida alcoĂłlica em um quadro de dependĂȘncia quĂ­mica.

Com o tratamento, porĂ©m, as coisas melhoraram. Ela conta que hĂĄ mais de seis meses nĂŁo se pesa na balança e estĂĄ comendo de maneira mais saudĂĄvel. Apesar das recaĂ­das de vez em quando, nĂŁo estĂĄ mais contando calorias, mesmo olhando sempre atrĂĄs da caixa para consumir alimentos menos calĂłricos e sentindo que engordar ainda gera um sentimento de pavor. “O triste Ă© saber que isso nĂŁo tem cura, sabe? Sempre terei que estar de olho e tomando cuidado com possĂ­veis gatilhos deste problema.”

Como ela, Mia e Marcella seguem com acompanhamento profissional e apoio da família na recuperação. "Não quero mais perder peso, inclusive tenho ganhado um pouco. Tenho entendido bem mais a fundo essa relação do peso, autoestima e autoconhecimento", diz Marcella.

Errata: A reportagem foi alterada para anonimização de uma das entrevistadas.

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