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SĂO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O corpo deitado de Angela Davis se encolhe no quadrado apertado que ocupa o canto superior esquerdo da bandeira dos Estados Unidos. Espalhada na pĂĄgina dupla de um livro, a imagem Ă© chapada em branco e preto, e nas listras escuras se escreve que a Ășnica coisa que acompanhava a jovem professora na cela de sua prisĂŁo era um camisolĂŁo de hospital. Ă um dos momentos sublimes de "Miss Davis", uma graphic novel que conta a obra de uma das maiores intelectuais do movimento negro e antiprisional americano --um trabalho que usa os recursos visuais mais criativos das HQs como um meio de realçar o que hĂĄ de extraordinĂĄrio na vida daquela professora de filosofia. "Acima de tudo, uma graphic novel deve ir ao essencial", diz a francesa Sybille Titeux de la Croix, que roteirizou o livro. "As coisas nĂŁo se organizam como num romance, em que hĂĄ bastante espaço para um texto detalhado. Aqui hĂĄ tambĂ©m o desenho, que permite de algum jeito reviver as personagens, criando uma nova iconografia, mais atual, sobre uma figura emblemĂĄtica." Davis nĂŁo foi a Ășnica intelectual a receber o tratamento dos quadrinhos. TambĂ©m viraram desenhos coloridos, nos Ășltimos anos, pensadores tĂŁo dĂspares quanto Antonio Gramsci, Yuval Noah Harari e Karl Marx, indicando um novo filĂŁo de HQs com objetivos, por assim dizer, quase didĂĄticos. Veja sĂł o exemplo do lançamento mais recente da editora Veneta, referĂȘncia em publicaçÔes desse gĂȘnero, que quadriniza o filĂłsofo alemĂŁo Herbert Marcuse --influĂȘncia de boa parte dos ativistas do Maio de 1968 e, por coincidĂȘncia, da prĂłpria Angela Davis, a ponto de um aparecer no livro do outro. Na adaptação de Marcuse, o texto domina mais o quadro, num esforço perceptĂvel de transmitir as principais ideias de um pensador complexo ao leitor, ao passo que acompanhamos suas andanças pelo mundo, seus laços familiares, suas filiaçÔes a universidades e correntes polĂticas. O americano Nick Thorkelson, autor da obra, lembra ter como meta apresentar um intelectual que cativou tantos jovens revolucionĂĄrios do passado a uma nova geração, a que ele Ă© pouco familiar --um objetivo tambĂ©m declarado por Titeux em relação a Davis. "O quadrinho Ă© um meio que permite trazer ideias importantes a leitores mais jovens. Nos Estados Unidos, certamente, eles tĂȘm certa reputação de ser para crianças, apesar de as pessoas que prestam atenção jĂĄ perceberem que nĂŁo Ă© mais de modo algum uma mĂdia infantil." O cartunista, sorridente e de cabelos grisalhos, diz que os americanos da sua idade nunca aprenderam direito a ler HQs porque achavam algo primitivo, vergonhoso. Mas isso mudou desde que artistas respeitados, como o Art Spiegelman de "Maus", passaram a ter reconhecimento crĂtico. "Ă uma mĂdia maravilhosa para discutir ideias e observar a histĂłria em ação. E para transmitir o que parece ser o coração de ideias complexas, porque uma imagem conta por mil palavras." Dessa forma, quando um iniciante Marcuse busca, ainda na Alemanha dos anos 1920, algum recurso para tornar sua filosofia mais concreta e atual, um livro de Martin Heidegger bate Ă sua porta --literalmente. E quando, anos depois, ele recebe a notĂcia de que Heidegger se juntou aos nazista, a pĂĄgina mostra o jovem filĂłsofo levando uma tijolada na cabeça. A pesquisadora Maria Clara Carneiro comenta que essa intenção de atrair jovens com linguagem visual, muito forte no imaginĂĄrio de pais e professores, nĂŁo vem acompanhada de uma educação atenta Ă leitura de imagens. "Eu sou da defesa de que nĂŁo Ă© fĂĄcil ler quadrinhos", diz Carneiro, que Ă© doutora em teoria literĂĄria e professora da Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. "Ă preciso ter uma formação nisso. O ensino na escola nos limita sempre a uma mesma tipologia, mas Ă© preciso criar um vocabulĂĄrio, ler quadrinhos diferentes, assim como se faz com o texto." O efeito disso Ă© que muitos quadrinhos com algum objetivo de ensino se importam demais com o que estĂĄ escrito e dĂŁo menos bola para a estĂ©tica. Carneiro chama obras assim de "menos quadrinizadas". "O quadrinho envolve uma articulação, dentro de uma mesma pĂĄgina, em que os elementos criam um sentido entre si. O menos quadrinizado Ă© aquele em que o texto e a imagem sĂŁo redundantes, ou no qual o entendimento estĂĄ sĂł no texto, e a imagem estĂĄ a serviço dele." Por isso Ă© tĂŁo desafiante criar quadrinhos sobre pessoas conhecidas por suas ideias. O risco de o produto final ser um apanhadĂŁo de teses complicadas em um livro ilustrado --e nĂŁo quadrinizado-- Ă© grande. Sybille Titeux de la Croix, ao explicar como adaptou a vida de Angela Davis, conta que procurou dosar as ideias mais complexas da professora com "cenas de ação" de uma vida marcada por eventos de alta temperatura polĂtica. Ao responder uma pergunta sobre se todo grande intelectual poderia ter sua vida transposta para uma HQ, ela Ă© taxativa. "Absolutamente nĂŁo." "Muitas mentes excepcionais tiveram vidas incrivelmente chatas. Imagine se eu faço a biografia de Pierre Bourdieu, e vocĂȘ o vĂȘ fazendo palestras, dando aulas no CollĂšge de France, Ă s vezes jogando rĂșgbi --e vocĂȘ teria perdido todo o tempo precioso que poderia gastar lendo os livros dele. Os leitores iam correr atrĂĄs de mim na rua, pedindo reembolso. E teriam razĂŁo!"