A poesia total de Elisa Lucinda

Todo poeta tem um rosto. O dela Ă© radioso. Em parte, pela bela mistura que deu numa negra com olhos verdes. Mas principalmente porque Elisa Lucinda tem uma luz interior que se publicita em suas palavras profundamente declamadas. Ela se move no palco com a idĂȘntica desenvoltura com que seus versos se movimentam na pĂĄgina. Muita gente jĂĄ viu Elisa nas novelas da Globo, a Ășltima vez na trama Lado a Lado, escrita por Claudia Lage e JoĂŁo Ximenes Braga. Mas privilegiados sĂŁo os que jĂĄ a viram declamando seus poemas com dicção perfeita e fogo na alma. "Desde pequena eu praticava a poesia falada, acho que ali eu jĂĄ exercitava a atriz que me tornei. A poeta e a atriz sĂŁo indissociĂĄveis em mim", afirma Elisa. Quando ela completou onze anos, sua mĂŁe Divalda a encaminhou para ter aulas de declamação. Com a professora Maria Filina, a menina aprendeu que "devemos conversar com a poesia e jamais aprisionar a palavra em uma sĂł forma de dizer." Libertar a palavra e libertar a si mesma Ă© um propĂłsito recorrente no trabalho de Elisa Lucinda, como comprovam estes seus versos do poema Ăltima Moda: "(...) NĂŁo quero esses boletos/ essas etiquetas / esses preços / esses compromissos/ NĂŁo tenho cĂłdigo de barras, / (...) NĂŁo caibo nestas caixas / nestas definiçÔes / nestas prateleiras (...)".
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Escrevo para esclarecer
NinguĂ©m precisa ser doutor em linguĂstica ou em teoria literĂĄria para se deliciar com os versos de Elisa Lucinda. Ela consegue - como quase ninguĂ©m - escrever sobre temas complexos de forma extremamente clara e bonita. "Eu busco a maneira mais natural de ser e dizer. Procuro um Ă vontade para aquela realidade. Minha poesia Ă© feita para revelar, nĂŁo escrevo para esconder nada. Persigo a beleza das palavras, porque a beleza Ă© condição obrigatĂłria para que um conjunto de palavras se torne poesia", nos ensina a escritora. Nascida em Cariacica, EspĂrito do Santo, em 2 de fevereiro de 1958, ela se mudou para o Rio de Janeiro - onde mora atĂ© hoje - aos vinte e poucos anos. Levou na mala, alĂ©m das roupas e do nĂ©cessaire, as liçÔes do seu pai Lino que adorava fazer trocadilhos, alĂ©m de ensinar com paixĂŁo e bom humor o portuguĂȘs para os filhos. Na Cidade Maravilhosa, Elisa Lucinda amadureceu seus mĂșltiplos talentos. Subiu aos palcos, foi para frente das cĂąmeras, soltou a voz em cançÔes e poemas, escreveu sem parar. Ela diz: "A cantora, a atriz, a poeta estĂŁo em mim. Tudo sou eu, nĂŁo tem muito mistĂ©rio, nem explicação. Sou uma artista, procuro desenvolver minhas inclinaçÔes e ampliar minhas possibilidades. Sou hiperativa sem medicação". A modĂ©stia Ă© dela, o prazer Ă© nosso.
Meu tema Ă© o mundo
A poeta Elisa Lucinda fala de amor, dor, paixão, frustação, nascimento, morte. Esses temas universais que acompanham a desesperança e esperança de todos nós. Mas sua poesia não se furta a trabalhar com problemas sociais e bem brasileiros. Racismo, sexismo, maltrato aos pobres. No poema Mulata Exportação, lemos o seguintes versos: "(...) Olha aqui meu senhor: / Eu me lembro da senzala / e tu te lembras da Casa-Grande / e vamos juntos escrever sinceramente outra história / Digo, repito e não minto / (...) Porque deixar de ser racista, meu amor, / não é comer uma mulata!". Qual a razão de poemar sobre o racismo? Ela responde: "Ser preto no Brasil é muito puxado. Mata-se um leão por dia. Pois em qualquer lugar e em qualquer balcão, a pessoa negra pode receber um olhar, uma palavra, que não a enxergam como pessoa de primeira categoria". Na mesma toada, Elisa Lucinda escreve sobre o ser e o estar mulher na atualidade: "Muitas mulheres morreram no passado e ainda hoje são assassinadas por assumirem suas escolhas de amores e parceiros. Eu aproveito o respaldo de muitos leitores para falar da liberdade feminina sem que o vizinho ou vizinha me chame de puta. No fundo, acredito no poder da palavra como arma e instrumento para melhorarmos o mundo. Não existe essa de um ser maior ou melhor do que o outro".
Poesia para todos

Um traço marcante de Elisa Lucinda Ă© nĂŁo usar a mĂĄscara do poeta como um ser especial, tocado por arcanjos. Ela Ă© uma das fundadoras da Casa Poema, com sede em Botafogo, Rio de Janeiro. A filosofia do projeto - que pode se replicado em qualquer canto do Brasil - se apoia na ideia de que a poesia, particularmente a poesia falada, colabora com a qualidade de vida pessoal e social das pessoas. O pĂșblico que participa de oficinas e saraus Ă© abrangente. SĂŁo educadores, policiais, jovens da periferia, jovens com boa renda, aspirantes a escritores. "Eles aprendem a arte de dizer versos de um jeito coloquial. Passam a compreender a força da palavra como instrumento de informação, ampliação de repertĂłrio e formação de cidadania", Elisa esclarece. Ao lado de todos esses afazeres, a cantora, atriz e poeta ainda arranja tempo para tietar o filho Juliano Gomes, jovem cineasta, de quem ela diz: "Guardem esse nome, pois virĂŁo muitas coisas boas dele". No momento, ela tambĂ©m trabalha na divulgação de seu mais recente livro Fernando Pessoa, o Cavaleiro do Nada: "Escrevi sobre o homem Fernando, esse portuguĂȘs genial. NinguĂ©m precisa ter pedigree em teoria literĂĄria para curtir meu livro", assegura a dama das palavras aladas.