10 pontos para entender o anúncio da CoronaVac no Brasil
O governo de São Paulo revelou, na terça-feira (12), a eficácia global da CoronaVac, vacina contra a Covid-19 desenvolvida pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac Biotech. Pela primeira vez, conheceu-se detalhes do estudo clínico com aprofundamento nos dados obtidos nos testes de fase 3 realizados no Brasil.
A divulgação, no entanto, só aconteceu após o governo paulista adiar duas vezes a data de revelação, e depois de ter feito, na semana passada, uma divulgação parcial, gerando críticas de especialistas e pesquisadores que cobravam transparência nos resultados.
A comunicação truncada e em tom político, a vastidão de termos técnicos e a desinformação provocada pelas “fake news” e questionamentos sem base de grupos anti-vacina — incentivadas pelo presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores — formaram a combinação perfeita para diluir um combo de informações valiosas.
Confira 10 pontos para entender o anúncio da CoronaVac no Brasil:
QUAL FOI A EFICÁCIA GLOBAL DA CORONAVAC E O QUE ELA SIGNIFICA?
A CoronaVac atingiu uma eficácia global de 50,38%.
Este dado não havia sido revelado até então. Na prática, ele significa que quem for imunizado tem 50,38% de chance de não ser infectado pela Covid-19.
O índice mínimo recomendado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) e pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para aprovação é 50%.
A taxa de eficácia representa a proporção de redução de casos entre o grupo vacinado comparado com o grupo não vacinado.
Para o Butantan obter esse dado, foi preciso analisar o número de casos entre os voluntários que receberam a CoronaVac e comparar com o número de infectados no grupo que recebeu um placebo — uma substância salina sem efeito no organismo.
Foram 9.242 voluntários ao todo: 4.653 receberam a CoronaVac, e outros 4.599 receberam o placebo.
Durante os testes, o grupo da vacina apresentou 85 infecções por Covid-19, correspondendo a 1,8% (85 infectados / 4.653 voluntários).
Enquanto isso, o grupo da substância salina manifestou 167 casos positivos, equivalendo a 3,6% (167 casos / 4.599 voluntários).
Portanto, ao confrontar os percentuais, chega-se ao patamar de 50,38%.
💉 Vacina do @butantanoficial contra o #coronavírus apresenta 50,38% de eficácia global, índice superior ao patamar exigido pela OMS.
Proteção é de 78% em casos leves e 100% contra casos moderados e graves da COVID-19.
Entenda >> https://t.co/5KlmLwRts2
.#VacinaJá #governoSP pic.twitter.com/5qeQGDFQdV— Governo de S. Paulo (@governosp) January 12, 2021
QUAL FOI A EFICÁCIA DA CORONAVAC PARA CASOS LEVES?
A eficácia global envolve todos os níveis de infecção por Covid-19, seja ela muito leve (que não precisa de ajuda médica), leve (que necessita de assistência), moderada (que precisa de internação), e grave (quando chega-se à UTI).
Já na observação de casos leves, são analisados somente as infecções sintomáticas e que precisaram de assistência médica.
Nesse recorte, a eficácia da CoronaVac sobe para um patamar de 77,96%.
Para essa conta, compararam-se os 7 casos registrados no grupo da vacina, equivalente a 0,15% (7 / 4.653), e confrontaram com os 31 casos leves no grupo do placebo, correspondendo a 0,70% (31 / 4.599).
Comparando 0,15% com 0,70%, nota-se o aumento de 78% de casos leves no grupo do placebo.
Foi esse o valor explorado pelo governador João Doria (PSDB) no anúncio feito na semana passada.
QUAL FOI A EFICÁCIA DA CORONAVAC PARA CASOS MODERADOS E GRAVES?
Olhando apenas as manifestações moderadas e graves da Covid-19, aquelas em que o voluntário precisou ser hospitalizado ou chegou até a UTI (Unidade de Terapia Intensiva), os testes registraram 7 ocorrências: todas elas no grupo do placebo, e nenhuma nos vacinados.
Nessa linha, a eficácia da CoronaVac nos casos moderados e graves é de 100%.
Contudo, a interpretação do próprio Butantan é que esse número de 100% não é estatisticamente significativo, conforme afirmou Ricardo Palacios, diretor médico de pesquisa e responsável pelos testes.
Para ter significância estatística, é preciso ter um sinal claro de que os casos graves impedidos supostamente pela vacinação são decorrentes do efeito do imunizante, e não do acaso -esses casos não seriam graves de toda forma, sem a aplicação ou não da vacina.
Estatisticamente, somente esses 7 casos não atribuem à vacina, ainda, a proteção em 100% dos casos graves de Covid-19.
POR QUE A EFICÁCIA NO BRASIL FOI MENOR DO QUE EM OUTROS PAÍSES?
Esse ponto foi fortemente comentado pelos diretores do Butantan durante a coletiva. Testada também em outros países além do Brasil, a CoronaVac apresentou uma eficácia global de 91,25% na Turquia, e de 65,3% na Indonésia.
A explicação para a diferença, segundo o Butantan, está no grupo selecionado para servir como voluntários. No Brasil, apenas profissionais de saúde puderam se inscrever para os testes da CoronaVac, tanto para o grupo do placebo quanto para o da vacina.
Na coletiva, Palacios explicou que a seleção dos profissionais de saúde foi proposital visto que essa população está muito mais exposta ao vírus do que outras pessoas no geral.
“O teste não é a vida real exatamente. É um teste artificial, no qual selecionamos dentro das populações possíveis, selecionamos aquela população que a vacina poderia ser testada com a barra mais alta”, afirmou Palacios. “Fizemos deliberadamente para colocar o teste mais difícil para essa vacina, porque se a vacina resistir a esse teste, iria se comportar infinitamente melhor em níveis comunitários”, completou.
O presidente do Butantan, Dimas Covas, estima que a chance de infecção nos profissionais de saúde chega a ser 5 vezes maior do que em outras classes.
Portanto, quanto mais exposta à Covid-19 está a população, mais ela tem chance de ser contaminada e, consequentemente, menor será o percentual da eficácia do teste.
Outro ponto destacado por Covas na coletiva foi o parâmetro adotado pelo Butantan para considerar a definição de caso positivo de Covid-19. Os voluntários que apresentassem os seguintes sintomas por 2 dias ou mais eram selecionados para fazer o teste de RT-PCR:
Febre ou calafrios; tosse; falta de ar; fadiga; dor muscular; dor de cabeça; perda do olfato e paladar; dor de garganta; coriza; náusea; ou diarreia
Na avaliação de Dimas Covas, o mesmo critério para submeter o voluntário ao teste não foi adotado por outros estudos clínicos.
A CORONAVAC PODE SER CONSIDERADA SEGURA?
De acordo com os dados apresentados, sim, e bastante.
O Butantan afirmou que não foram registrados eventos adversos graves e de interesse especial relacionados à vacinação.
Com relação às reações alérgicas, apenas 0,3% dos participantes reportaram alguma ocorrência, e sem distinção entre os grupos que receberam a vacina e o placebo. Já as reações anafiláticas — alergia intensa e potencialmente fatal — não foram registradas.
A maioria dos efeitos reportados, cerca de 40%, foi dor no local da injeção e principalmente na aplicação da segunda dose.
POR QUE A DIVULGAÇÃO DOS DADOS FOI ADIADA 2 VEZES?
O Butantan ainda não se pronunciou oficialmente sobre os dois adiamentos do anúncio da eficácia, ou sobre a divulgação parcial dos dados na semana passada.
No entanto, uma das razões pode ser o contrato que o Butantan firmou com a Sinovac Biotech. A informação colhida junto a pessoas ligadas à pesquisa vacina vai ao encontro do que consta no acordo entre a Sinovac e o Butantan.
No termo, no item 4.8.6, consta que “a Sinovac detém os direitos de propriedade intelectual e interesses da Sinovac na vacina e que os dados clínicos da Fase III abrangem os direitos de propriedade intelectual e interesses da Sinovac na vacina”.
Além disso, o laboratório chinês viu discrepâncias entre dados da Indonésia, da Turquia e no Brasil, considerado natural visto que eles não foram aplicados à mesma população. Contudo, o interesse comercial da Sinovac é ter um número unificado.
POR QUE O GOVERNADOR JOÃO DORIA NÃO ESTEVE NA COLETIVA?
Oficialmente, a justificativa para a ausência de Doria é de que o governador não vai a entrevistas coletivas do Instituto Butantan e que, devido ao “tema técnico, ele deixa para os cientistas”, segundo informou sua assessoria.
O governador, entretanto, participou da coletiva na última semana, na qual foi divulgado o percentual mais positivo, de 78%.
Para a divulgação desta terça, o governo contou com a presença de 13 especialistas, incluindo profissionais independentes, e sem ligação com o governo estadual ou o Centro de Contingência Contra a Covid-19.
O convite ao amplo time de pesquisadores e cientistas acontece em momento que a gestão Doria é acusada de falta de transparência e de explorar politicamente a disputa pela vacina contra Bolsonaro.
O QUE DISSERAM OS ESPECIALISTAS SOBRE A CORONAVAC?
“Temos uma boa vacina. Não é a melhor vacina do mundo, não é uma vacina ideal, é uma boa vacina que tem a sua eficácia dentro dos limites do aceitável pela comunidade científica, pela Organização Mundial de Saúde, por parâmetros internacionais (...). É uma vacina que vai nos permitir começar esse processo de controle da pandemia” - Natalia Pasternak, doutora em microbiologia e presidente do Instituto Questão de Ciência.
“Os resultados não são exatamente o que a gente esperava, porque queriam uma vacina de eficácia de 90%, mas eles são de uma vacina perfeitamente aceitável. Eu quero essa vacina, eu quero que os meus pais tomem essa vacina. Ela é possível e adequada para o Brasil, compatível com a nossa capacidade de produção local, de armazenamento e cadeia de distribuição. Uma vacina só é tao boa quando tem capacidade de ter uma cobertura vacinal o mais completa”, completou Pasternak.
“Os números estão todos corretos, tanto os de semana passada quanto os de hoje. Interpretar a eficácia de uma vacina não é coisa corriqueira, simples. O governo pode não ter colocado os dados com muita clareza, mas agora a gente precisa reforçar que temos uma vacina boa, eficiente, eficaz e segura” - Ana Escobar, médica e divulgadora científica.
“Para mim o número mais importante continua sendo o 78% [de prevenção nos casos leves]. Porque esse número consegue ter um impacto muito grande na carga da doença no nosso país e na sobrecarga de trabalho dos profissionais de saúde” - Rosana Richtmann, pesquisadora do Instituto de Infectologia do Hospital Emílio Ribas.
“A vacina de rotavírus tinha uma eficácia de aproximadamente 80% para prevenir hospitalização, mortes. Uma eficácia de aproximadamente, 40%, 50%, para prevenir diarreia de qualquer gravidade. (...) A própria vacina de gripe, que apresenta índices até inferiores a essa que foi apresentada, também propiciou impactos a forma de prevenção” - Marco Aurélio Safadi, presidente do Departamento de Infectologia da Sociedade Brasileira de Pediatria.
“Só acho que eles deveriam ter publicado os dados todos em conjunto, inclusive esses 50,4%. (...) Continua sendo uma excelente vacina para a gente acabar com o caos que está acontecendo hoje, principalmente de internações. É uma vacina eficaz, principalmente para casos graves e moderados, vai reduzir pra caramba o número de internações. O que se tem que fazer é urgentemente começar a vacinação, a mais ampla possível” - Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto.
É POSSÍVEL COMPARAR A EFICÁCIA DA CORONAVAC COM A DE OUTRAS VACINAS?
O anúncio de um percentual pouco acima dos 50% mínimos pode levantar uma desconfiança quanto à segurança e eficácia da CoronaVac na comparação com as demais vacinas pelo mundo.
Os pesquisadores alertam, no entanto, para a imprecisão que se obtém ao comparar dois estudos diferentes.
“A gente quer comparar os diferentes estudos, mas é o mesmo que comparar uma pessoa que faz uma corrida de 1km em um trecho plano e uma pessoa que faz uma corrida de 1 km em um trecho íngreme e cheio de obstáculos”, relatou Palacios, diretor do Butantan.
Os 50,38% são abaixo dos dados acima de 90% de eficácia divulgados, por exemplo, pelas vacinas que utilizam a nova tecnologia de RNA, na qual material genético é usado para levar proteína estimulante do sistema imune ao paciente.
Contudo, a “lupa” também parece ser maior no estudo do Butantan, enquanto os demais testes também apresentaram dados que estão sendo contestados.
No caso da vacina da Pfizer-BioNTech, com 95% de eficácia geral, houve 162 infectados com Covid-19 entre quem tomou placebo e apenas 8 entre vacinados, entre 44 mil voluntários.
Só que o relatório da FDA, agência reguladora dos Estados Unidos, aponta a exclusão de 3.410 pessoas que sofreram sintomas de Covid-19, mas não foram testados. Desses casos suspeitos, 1.594 faziam parte do grupo vacinado e 1.816, do que recebeu placebo.
A discrepância foi ressaltada em postagem de Peter Doshi, editor associado do prestigioso British Medical Journal.
A diferença entre as duas publicações é que a Pfizer fez uma exposição detalhada de seus dados, enquanto o Butantan alega que é preciso esperar a análise da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para tornar público um relatório com mais de 10 mil páginas.
O QUE FALTA PARA A CORONAVAC SER APROVADA?
Última etapa antes de chegar ao braço da população, a CoronaVac segue o rito para ter seu uso emergencial aprovado pela Anvisa. O pedido foi protocolado na sexta-feira (8) na agência, que fixou um prazo de até 10 dias para analisar todos os documentos.
Entretanto, no sábado (9), a agência enviou oficio ao Butantan pedindo a apresentação de informações complementares, após concluir triagem inicial de documentação apresentada na véspera. O Instituto Butantan, na coletiva desta terça-feira (12), informou que as pendências estão sendo solucionadas e que a troca de documentos é comum visto que o trâmite emergencial nunca havia sido realizado no país.
A Anvisa marcou para domingo (17) uma reunião dos diretores da agência para bater o martelo sobre a autorização.